Penibético, Fernando Vicente, s.d
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Me
colaram no tempo, me puseram
uma
alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado
ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a
leste pelo Apóstolo de São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me
vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois
chego à consciência da terra, ando como os outros,
me
pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio.
Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me
puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço.
Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto
de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém
da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem
o mal.
Minha
cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto
de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não
acredito em nenhuma técnica.
Estou
com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é
por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens
imaginários,
depois
estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na
fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou
no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me
desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde
esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos,
estrelas, noite, mulheres andando,
presságios
brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o
mundo vai mudar a cara,
a
morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei
no ar.
Estarei
em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me
aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na
cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo
transparecerá:
vulcões
de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o
vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei
na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei
nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me
insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas
desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto
os que se tapeiam,
os
que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva
São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os
soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as
fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam
os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam
muito...
viva
eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou
a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos
amores raros que tive,
Vida
de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo
é ritmo no cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou
no ar,
na
alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no
meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no
pensamento dos homens que movem o mundo,
nem
triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.
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Murilo Mendes
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