sexta-feira, 4 de novembro de 2016

"O que nos mata é a solidão povoada"

Melancolia I, Albrecht Dürer, 1514
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Nós que não somos naturais, porque
somos quem nega a natureza, não
morreremos nunca de animas a morte.
Essa morte primeva, com que acabam
os que jamais souberam que viviam,
não nos pertence desde a hora em que 
de humanidade nos fizemos homens
e ao sofrimento abrimos esta carne
embebendo-a do amor que não devera
ser mais que o cio do prazer sem nome
e sem memória alguma. Nunca mais
havemos de morrer em paz e espanto
de se acabar o mundo e não nós nele.
O que nos mata é a solidão povoada.
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Jorge de Sena.
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terça-feira, 25 de outubro de 2016

"O que será puro, no mundo, quando as palavras se abastardarem?... Principalmente as palavras de carne, lacerados pedaços de angústias..."

Marchers (Les Marcheurs), Gao Xingjian, 2013
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"Pomos uma palavra no ponto onde nossa ignorância começa, para além do qual não conseguimos enxergar, como por exemplo a palavra Eu, a palavra estou, a palavra sofrendo elas são talvez o horizonte de nosso conhecimento, mas não verdades..."
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F. Nietzsche.
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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

"Todas as coisas e seres são dados aos poemas e exigem estar..."

Pina Bausch, © foto de Paulo Pimenta, 2008
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Todas as coisas e seres
são dados aos poemas e exigem estar.
Próximas paisagens distantes,
seres presentes.
Entre o aparo e a escrita.
Próxima, não a respiração
mas a presentificação das coisas,
e infindos riscos.
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Fiama Hasse Pais Brandão.
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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Retrato do artista enquanto sujeito: Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade, poeta português (1923-2005)
© foto de Alfredo Cunha, 1998
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Já gastamos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus
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Eugénio de Andrade.
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sábado, 27 de agosto de 2016

Música para curar a alma: Gal Costa

Derradeira Primavera, faixa do álbum "Gal Costa canta Tom Jobim", 1999
música de Antônio Carlos Tom Jobim e Vinícius de Moraes
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quarta-feira, 27 de julho de 2016

"A tristeza das coisas é tanto maior quanto mais subtil for a sua imagem no olhar..."

In Search, Gao Xingjian, 2014
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A alegria das coisas não é a posse
mas a semelhança delas com os nossos dedos.
Nem as coisas têm forma própria
mas a que lhes dá a mão, usando-as.

A tristeza das coisas é tanto maior
quanto mais subtil for a sua imagem no olhar.
Nem o arqueólogo ama em absoluto a matéria.
O galeão levantado do lodo ou do olvido
é um objeto sem presença, ou sem destino,
por vezes capaz de trazer-nos as lágrimas.

Mas não usámos nós as coisas
até ao excesso, ou a nossa alegria
fez-se do proveito parco, do mínimo?
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Fiama Hasse Pais Brandão.
(Portugal, 1938-2007)
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domingo, 1 de maio de 2016

"está tudo obscuro, está tudo obscuro em mim..."

János Derzsi, cena da obra-prima "O Cavalo de Turim", dir. Béla Tarr, 2011
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Gostaria de descrever uma emoção simples
como alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
socorrendo-se de restos de chuva ou sol

Gostaria de descrever uma luz
que começa a nascer em mim
mas que sei não se assemelhar
a alguma estrela
pois não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta

Gostaria de descrever coragem
sem arrastar atrás de mim um velho leão
e também ansiedade
sem entornar um copo de água

para dizê-lo de outra maneira
desistiria de todas as metáforas
em troca de uma palavra
retirada do meu peito como uma costela
uma palavra
nascida dentro das fronteiras
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer – amo
eu ando às voltas como um louco
à procura de mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que apesar de tudo não é feita de água
pede água para a cara

e a raiva
diferente do fogo
pede-lhe emprestado
o tom eloquente

está tudo obscuro
está tudo obscuro
em mim
que homem de cabelo grisalho
irá separar de uma vez por todas
dizendo
isto é a essência
e isto é a matéria

adormecemos
com uma mão debaixo das nossas cabeças
e com a outra em inúmeros planetas

os nossos pés abandonam-nos
e entram na terra
com as suas pequenas raízes
que na manhã seguinte
arrancamos com dor.
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Zbigniew Herbert.
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quarta-feira, 27 de abril de 2016

"... É isto a vida: algo que se ouviu num timbre momentâneo e sobreposto ao vácuo entre as palavras, para além do som ou do sentido..."

The Triumph of Music, Marc Chagall, 1967 
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A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto alguma vez.
Vejamo-lo, bem sei, calados, vendo. E se a música
for música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum silêncio recolhido nos persiste para além
de alguns minutos. E não dura na memória como
silêncio. Ou, se dura, esse silêncio cala
a própria música que adora. Porque a música
não é silêncio mas silêncio que
anuncia ou prenuncia o som e o ritmo.
Se os sons, porém, não são de devaneio,
e sim a inteligência que no abstracto busca
ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se tudo se organiza como a variada imagem
de uma ideia despojada de sentido;
se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem necessários; se tudo repercute como
em cânones cada vez mais complexos que não desenvolvem
um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas em volutas brancas e douradas cujos
recantos de sombra são um trompe l’oeil
para que elas mais sejam em paredes curvas;
se uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater nas teclas em cascatas de ordem;
e se tudo existiu na música para tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido — COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que não haja segredo em nada que se faça
a não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda que volte ao tema inicial, repete
o que foi proposto como tema para
se transformar no tempo que contém. Quando, no fim,
aquele tema retorna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.
Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passe, ou porque a cúpula se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o virtual de um pensamento se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.
Um concreto de coisas exteriores — e o espanto é esse —
igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem que ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente?
..

Jorge de Sena.
Poema Bach: Variações Goldberg, do livro Arte de Música.
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Ouça as Variações para cravo compostas por Johann Sebastian Bach, em 1741, interpretadas por Glenn Gould.
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domingo, 24 de abril de 2016

Música para curar a alma: Ella Fitzgerald (2)

Ella Fitzgerald Sings The Cole Porter Songbook, 1956, Verve Records (Pt.1)
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Ella Fitzgerald Sings The Cole Porter Songbook, 1956, Verve Records (Pt.2)
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Nina Simone era uma força da natureza; Billie Holiday cantava como se estivesse em carne viva; Sarah Vaughan, com a melhor de todas as técnicas; mas Ella Fitzgerald era a própria música; e sua voz o mais harmonioso e afinado dos instrumentos.
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sábado, 27 de fevereiro de 2016

"E aí adormecia dum sono sem remorsos e sem melancolia..."

Master Bedroom, Andrew Wyeth, 1965
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Para Madonna, que agora chamamos e já não está.

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,

nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.

Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.

Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.

Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."
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Manuel António Pina.
Poema "O Nome do Cão", do livro Todas as Palavras: poesia reunida. Ed. Assírio & Alvim, 2012.
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Retrato do artista enquanto sujeito: Mário Cesariny

Mário Cesariny de Vasconcelos, poeta e pintor português (1923-2006)
© foto de Nuno Calvet, s.d.
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(...) 
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não
dia sim dia não
devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos
técnicas mais sérias prestígios maiores
devo saber que és forte e amplo transparente e colher-te 
murmúrio flébil aureolado
que eu arranco da luz que encharca o mundo
dia sim dia não dia sim dia não 
(...)
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Mário Cesariny, 
Trecho do poema Ars Magna, do livro Manual de Prestidigitação.

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domingo, 17 de janeiro de 2016

Charlotte Rampling e um Soneto Camoniano

Charlotte Rampling, cena do filme "45 anos"dir. Andrew Haigh, 2015
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Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
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Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes, nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
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Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá m'esconde
Amor um mal que mata e não se vê:
Que dias há que n'alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doí não sei por quê.
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Luís de Camões.
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BERARDINELLI, Cleonice. Cinco Séculos de Sonetos Portugueses: de Camões a Fernando Pessoa. Ed. Casa da Palavra, 2013.
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