quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

"E vejo bem, tudo recomeçar todas as vezes..."

Hope, George Frederic Watts,1886
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É do nascedouro da vida a grandeza.
É da sua natureza a fartura
a ploriferação
os cromossomiais encontros,
os brotos
os processos caules,
os processos sementes
os processos troncos,
os processos flores,
são suas mais finas dores
As conseqüências cachos,
as conseqüências leite,
as conseqüências folhas
as conseqüências frutos,
são suas cores mais belas
É da substância do átomo
ser partível produtivo ativo e gerador
Tudo é no seu âmago e início,
patrício da riqueza, solstício da realeza
É da vocação da vida a beleza
e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la
com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la,
cheio que é o seu princípio
Todo vazio é grávido desse benevolente risco
todo presente é guarnecido
do estado potencial de futuro
Peço ao ano-novo
aos deuses do calendário
aos orixás das transformações:
nos livrem do infértil da ninharia
nos protejam da vaidade burra
da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz
daquilo que ao nos aumentar
nos amesquinha.
A vida não tem ensaio
mas tem novas chances
Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores
Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão.
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Elisa Lucinda, in: Libação.
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O melhor dos recomeços é essa sensação de estar-se novo, revigorado. Na prática tudo tem a ver com "engrenagens do tempo", arrefecendo nossas horas viciadas de mal uso. Mesmo que por um dia, é bom esquecê-las. Imaginar com auxílio da esperança, que no minuto seguinte teremos segundas chances de mudança, de ajustamento dos ponteiros.
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sábado, 26 de dezembro de 2009

Haveres...

Debussy, Clair de Lune, por Angela Hewitt
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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
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Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
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O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.
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E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
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 Luís Vaz de Camões.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

"Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar."

The Difficult Lesson, William Bouguereau,1884
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Resolvi que os livros que não consegui ler esse ano, seja por falta de tempo, porque esperei baratear ou porque foram lançados a pouco, são a única lista para 2010. Preferindo acasos à previsibilidades...
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Clarice, Benjamim Moser
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O Compromisso, Herta Müller.
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Indignação, Philip Roth.
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Poesia Completa, Cecília Meireles
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O Outro, O Mesmo, Jorge Luis Borges
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Biografia Marc Chagall, Jackie Wullschlager
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De Verdade, Sándor Márai
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Caim, José Saramago
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O Original de Laura, Vladimir Nabokov
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Biografia Madonna, Lucy O'Brien
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O Seminarista, Rubem Fonseca
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Classes de Livros:
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▪ livros-que-você-pode-passar-sem-ler
▪ livros-feitos-para-outros-usos-que-não-a-leitura
▪ livros-já-lidos-sem-que-haja-necessidade-de-abri-los
▪ livros-que-você-tem-a-intenção-de-ler-mas-seria-necessário-primeiro- ler-outros
▪ livros-caros-demais-que-pretende-comprar-quando-baixarem-à-metade-do-preço

▪ livros-idem-acima-quando-saírem-em-edição-de-bolso
▪ livros-que-você-poderia-pedir-emprestados-a-alguém
▪ livros-que-todo-mundo-já-leu-e-é-então-como-se-você-também-os-tivesse-lido
▪ livros-que-há-muito-tempo-você-tem-a-intenção-de-ler
▪ livros-que-procurou-durante-anos-sem-encontrar
▪ livros-que-tratam-exatamente-do-assunto-que-o-interessa-neste-momento
▪ livros-que-você-quer-ter-a-seu-lado-em-qualquer-circunstância

▪ livros-que-você-poderia-separar-para-ler-talvez-no-próximo-verão
▪ livros-que-você-tem-a-necessidade-de-alinhar-com-outros-na-mesma-estante
▪ livros-que-lhe-inspiram-de-repente-uma-curiosidade-frenética-e-pouco-justificável
▪ livros-que-você-já-leu-há-tanto-tempo-que-seria-tempo-agora-de-relê-los
▪ livros-que-você-sempre-simulou-ter-lido-e-que-seria-necessário-finalmente-decidir-se-agora-ler-de-verdade.
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Italo Calvino, in: Se um viajante numa noite de inverno.
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

(Sobre) voar...

© Gregory Colbert, Ashes and Snow.
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"Yo no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas."
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Alejandra Pizarnik, in: As Aventuras Perdidas.
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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Agenda: Grete Stern e o Subconsciente Feminino

Grete Stern, Ellen Auerbach, 1929
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Imagine uma técnica de fotografia enraizada na psicanálise de Freud e na psicologia analítica de Jung, aliada à conceitos do surrealismo, expressionismo e dadaísmo.
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Sob essas bases se estruturam alguns dos trabalhos da fotografa alemã Grete Stern. Suas fotomontagens foram-me apresentadas há anos atrás numa sala de aula. Achei-as singulares, senão pela técnica numa época onde não existiam programas avançados de tratamento de imagem, pela representação onírica do imaginário feminino.
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Parte de seu significativo trabalho será exposto a partir do dia 15, no Instituto Moreira Salles. Serão exibidas 46 imagens remanescentes da série completa de 140, publicadas pela revista argentina Idílio, de 1948 à 1951. O projeto é fruto da coluna semanal "El psicoanálisis le ayudará", onde leitoras enviavam à revista seus sonhos e estes eram analisados por psicanalistas, para então serem representados pelas fotomontagens de Stern.
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Segue algumas fotos expostas da mostra. Lembrando que a série é reproduzida integralmente no catálogo da exposição. 
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Sem título, Os sonhos de projeção, 1948
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Garrafa no mar, Os sonhos sobre inibições, 1950 
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Amor sem ilusão, Os sonhos sobre transposições, 1950 
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Sem título, Os sonhos sobre artigos elétricos para o lar, 1950
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Sem título, Os sonhos sobre aprisionamento, 1949 
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Sem título, Os sonhos com lavanderia, 1950 
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Menino-flor, Os sonhos com crianças, 1948 
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Sem título, Os sonhos sobre o triunfo e dominação, 1949
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Sem título, Os sonhos sobre emudecimento, 1950 
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Sem titulo, Os sonhos sobre cansaço, 1949
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Os Sonhos de Grete Stern: fotomontagens
Instituto Moreira Sales
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea
De 15 de Dezembro à 17 de Janeiro de 2010
Ter à Sex, das 13h às 20h; Sáb, Dom e Feriados, das 11h às 20h
Entrada franca.
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"(…) na realidade não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer. O equívoco reside numa falsa analogia. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma."
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Hermann Hesse, in: O Lobo da Estepe.
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domingo, 13 de dezembro de 2009

Compondo silêncios...

Avenue of Poplars in Autumn, Vincent van Gogh, 1884.
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Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
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Manoel de Barros..

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Tão longe, se perto...

O gurizinho dos olhos negros, peça de Natal da escola, 1983.
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Saudade funciona como despertador. Alerta-nos sobre o perigo do esquecimento, da displicência com nossas memórias. Por tantos motivos que não só o avanço vertiginoso das horas ou o número crescente de informações, exigindo, sugando a nossa atenção, esquecemos. Do perecível, do imperecível, esquecemos. Pelo menos até que sintamos saudade.
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"A natureza da saudade é ambígua: associa sentimentos de solidão e tristeza – mas, iluminada pela memória, ganha contorno e expressão de felicidade. Quando Garrett a definiu como "delicioso pungir de acerbo espinho", estava realizando a fusão desses dois aspectos opostos na fórmula feliz de um verso romântico. Em geral, vê-se na saudade o sentimento de separação e distância daquilo que se ama e não se tem. Mas todos os instantes da nossa vida não vão sendo perda, separação e distância? O nosso presente, logo que alcança o futuro, já o transforma em passado. A vida é constante perder. A vida é, pois, uma constante saudade. Há uma saudade queixosa: a que desejaria reter, fixar, possuir. Há uma saudade sábia, que deixa as coisas passarem, como se não passassem. Livrando-as do tempo, salvando a sua essência da eternidade. É a única maneira, aliás, de lhes dar permanência: imortalizá-las em amor. O verdadeiro amor é, paradoxalmente, uma saudade constante, sem egoísmo nenhum."
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Cecília Meireles.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Agenda: David Lynch, Pierre Verger e Vitalino.

Esmiuçando o Universo Lynchiano
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Este tem sido um ano fértil para quem gosta de cinema. Depois da delícia que foi a mostra do Woody Allen no CCBB (com direito a catálogo com quase quinhentas páginas), é a vez de outro grande diretor ganhar retrospectiva.
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"David Lynch – O Lado Sombrio da Alma", entra em cartaz amanhã no espaço Caixa Cultural desnudando sua obra enigmática e surreal. Serão exibidos 40 filmes que compreendem longas, curtas, filmes que produziu, outros em que apenas atuou, documentários, obras que inspiraram o diretor, séries e comerciais para tevê. Com exceção dos longas-metragens, grande parte do material é inédito, inclusive em DVD.
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Destacam-se na programação os filmes "Coração Selvagem", "Império dos Sonhos", "Eraserhead", "O Homem Elefante" e "Cidade dos Sonhos".
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Mostra "David Lynch – O Lado Sombrio da Alma"
Espaço Caixa Cultural
Av. Almirante Barroso, 25, Centro
De 08 a 20 de dezembro de 2009
Sessões a partir das 17h, de terça-feira à domingo
R$ 4,00 (inteira) e R$ 2,00 (meia entrada)
Programação completa aqui.

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Mestre Vitalino por Pierre Verger, 1947
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Pierre Verger já era um renomado fotógrafo quando chegou ao Brasil em meados de 1947 e passou seis meses em Pernambuco. Ficou encantado com a arte intuitiva feita do barro e exposta nas feiras e ruas estreitas de Caruaru. Dentre tantos artesãos que viviam da informalidade na época, um chamou-lhe atenção, Vitalino Pereira dos Santos.
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Vitalino fez com o barro o que os contadores de estórias interioranos fazem em seus causos e anedotas, moldou na argila cenas cotidianas e ícones do imaginário nordestino. Carros de boi, vacas, cangaceiros, as danças... ganharam formas delicadas contrastando com a origem rudimentar da matéria-prima e a rudeza das mãos e da vida no sertão.
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O senso estético do fotógrafo francês identificou o artista antes que ele ganhasse o status de Mestre anos depois. Este olhar preconizador e a obra do artesão, se fundem na exposição "Arte do Barro e o Olhar da Arte – Vitalino e Verger", que conta com 81 fotografias e 81 esculturas.
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Exposição "Arte do Barro e o Olhar da Arte - Vitalino e Verger"
Museu Casa do PontalEstrada do Pontal, 3295, Recreio dos Bandeirantes
Ter à dom das 9h30 às 17h.
 
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A Beleza do Cotidiano Simples por Vitalino
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"...é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina."
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João Cabral de Melo Neto, in: Morte e Vida Severina.
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Imiscíveis...

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Não há nada mais frustrante que
convívio sem compatibilidade.
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Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
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.Álvaro de Campos, heterônimo do Fernando Pessoa.

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