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domingo, 31 de dezembro de 2017

"Volver a ser. Volver ao Ser..."

Une Promenade Dans Le Ciel, J.J. Grandville, 1847
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"La inspiración es lanzarse a ser, sí, pero tambíen y sobre todo es recordar y volver a ser. Volver ao Ser."
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Octavio Paz para empezar el nuevo año...
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segunda-feira, 15 de junho de 2015

"O tempo está vivendo-me..."

Baleen, Andrew Wyeth, 1982
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Escrituras de luz investem na sombra, mais prodigiosas que meteoros.
A alta cidade irreconhecível avança sobre o campo.
Certo de minha vida e de minha morte, fito os ambiciosos e tento entendê-los.
Seu dia é ávido como o laço no ar.
Sua noite é trégua da ira de ferro, prestes a atacar.
Falam de humanidade.
Minha humanidade está em sentir que somos vozes de uma mesma penúria.
Falam de pátria.
Minha pátria é um lamento de guitarra, alguns retratos e uma velha espada,
a desvelada prece dos salgueiros nos fins de tarde.
O tempo está vivendo-me.
Mais silencioso que minha sombra, cruzo o tropel de sua exaltada cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores da manhã.
Meu nome é alguém e qualquer um.
Passo devagar, como quem vem de tão longe que não espera chegar.
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Jorge Luis Borges.
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domingo, 31 de maio de 2015

"As coisas das quais facilmente nos lembramos quando são reais, também as lembraremos sem dificuldade quando fictícias..."

Série 'Luna Vedoma', Mario Giacomelli, 1986-96
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"Sim, se, graças ao esquecimento, não pôde estabelecer nenhum laço, tecer malha alguma entre si e o momento presente, se ficou em seu lugar, em seu tempo, se conservou sua distancia, seu isolamento no côncavo de um vale ou no cimo de uma montanha, a recordação faz-nos respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado, o ar mais puro que os poetas tentaram em vão fazer reinar no Paraíso, e que não determinaria essa sensação profunda de renovação se já não houvesse sido respirado, pois os verdadeiros paraísos são os que perdemos."
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Marcel Proust, in: O Tempo Redescoberto.
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segunda-feira, 20 de abril de 2015

enquanto houver alguém escrevendo...

A Heure de Loisir, Elizabeth Loisir, 1904
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_______ escrevo,
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis de nomear.
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Maria Gabriela Llansol.
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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"... deve dar-se sem nada de volta, assim como o pensamento é dado na solidão em toda a excelência do seu excesso..."

Café Müller, Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, de 1978
cena extraída do filme "Pina", direção de Wim Wenders, 2011
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Eu-te-amo. A figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas ao repetido proferimento do grito de amor.

Eu-te-amo não tem nuanças. Dispensa as explicações, as organizações, os graus, os escrúpulos. De uma certa forma - paradoxo exorbitante da linguagem -, dizer eu-te-amo é fazer como se não existisse nenhum teatro da fala, e é uma palavra sempre verdadeira (não tem outro referente a não ser seu proferimento: é um performativo).

(Embora seja dito milhões de vezes, eu-te-amo não está no dicionário; é uma figura cuja definição não pode exceder o título.)

A palavra (a palavra-frase) só tem sentido no momento em que eu a pronuncio: não há nela outra informação a não ser seu dizer imediato: nenhuma reserva, nenhum depósito do sentido. Tudo está no lançamento: é uma "fórmula", mas essa fórmula não corresponde a nenhum ritual; as situações em que digo eu-te-amo não podem ser classificadas: eu-te-amo é irreprimível e imprevisível.

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Roland Barthes, in: Fragmentos de um Discurso Amoroso.
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domingo, 2 de novembro de 2014

"Por que chamas, a um ser humano (o meu mais ser humano), um objeto amado?"

Dialog, Rudolf Bonvie, 1973
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"Tudo está ainda mais incerto, mas sinto que agora alcancei um estado de tranquilidade interior: enquanto pudermos controlar nossos números telefônicos e não houver ninguém para atender continuaremos os três a correr para a frente e para trás ao longo destas linhas brancas, sem lugares de partida ou de chegada que façam pairar aglomerados de sensações e significados por sobre a univocidade de nossa corrida, libertos finalmente da espessura estorvadora de nossas pessoas e vozes e estado de espírito, reduzidos a sinais luminosos, único modo de ser apropriado a quem quer se identificar ao que está dizendo sem o zumbido deformante que a nossa presença ou a alheia transmite ao que dizemos.
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Verdade que o preço a ser pago é alto, mas temos que aceitá-lo: não podemos nos distinguir dos muitos sinais que passam por este caminho, cada um com um significado seu que permanece escondido e indecifrável, pois fora daqui não há mais ninguém capaz de nos receber e de nos entender."
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Italo Calvino, in: Os Amores Difíceis.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

 Portrait of the Marquise de Pompadour, François Boucher, 1756
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"Depois dessa crença central que, durante a minha leitura executava incessantes movimentos de dentro para fora, para a descoberta da verdade, vinham as emoções que me eram dadas pela ação em que tomava parte, porque aquelas tardes eram  mais cheias de acontecimentos dramáticos do que muitas vezes uma vida inteira. Eram os acontecimentos que surgiam no livro que estava a ler; é verdade que as personagens por eles afetadas não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que a alegria ou o infortúnio de uma personagem real nos fazem experimentar só acontecem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que no aparelho das nossas emoções, como a imagem é o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por muito profundamente que simpatizemos com ele, é em grande parte apreendido pelos nossos sentidos, o que quer dizer que permanece para nós opaco, que apresenta um peso morto que a nossa sensibilidade não pode levantar. Se é atingido por uma infelicidade, só numa pequena parte da noção total que dele temos é que podemos comover-nos com isso; muito mais ainda, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si é que ele mesmo poderá comover-se. O achado do romancista foi ter a idéia de substituir essas partes impenetráveis á alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que a nossa alma pode assimilar a si mesma. Que importa então que as ações, que as emoções desses seres de uma nova espécie, nos surjam como verdadeiras, visto que as tornamos nossas, visto que é em nós que acontecem, que mantém sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar? E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, toda a emoção é decuplicada, estado em que o seu livro nos vai perturbar à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos a dormir, e cuja lembrança irá durar mais tempo, então, eis que ele desencadeia em nós durante uma hora todas as felicidades e todas as infelicidades possíveis, algumas das quais levaríamos anos de vida a conhecer, e as mais intensas das quais nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que se produzem nos retira a percepção delas (assim, na vida, o nosso coração muda, e essa é a pior dor; mas só na leitura, em imaginação, a conhecemos: na realidade ele muda, como certos fenômenos da natureza se produzem, com suficiente lentidão para que, se pudermos detectar sucessivamente cada um dos seus estados diferentes, em contra-partida nos seja poupada a própria sensação de mudança."
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Marcel Proust, in: Em Busca do Tempo Perdido,
 No Caminho de Swann.
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quarta-feira, 18 de junho de 2014

"parecia que a alma toda se sacudia..."

View, Antony Gormley, 1985
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"Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e ainda assim, estava no mesmo lugar! Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas..."
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João Guimarães Rosa, in: Manuelzão e Miguilim.
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quinta-feira, 17 de abril de 2014

"porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão, não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra."

Gabriel García Márquez, 06/03/1927 - 17/04/2014
© foto de Isabel Steva Hernández (Colita), s.d
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"Descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza..."
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Gabriel García Márquez, in: Memória de Minhas Putas Tristes.
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"Todos, absolutamente todos estamos sós..."
 Assista a entrevista que Gabo concedeu à RTVE.es, em 1982.
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

Portrait of Charles Baudelaire, Gustave Courbet, 1848
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A realidade bifurcou-se, na coisa real e em sua versão alternativa, duas vezes. Temos o evento e sua imagem. E temos o evento e sua projeção. Mas como para as pessoas os eventos reais muitas vezes não parecem ter mais realidade do que as imagens, nossas reações a eventos do presente recorrem, para confirmá-los, a esboços mentais, acompanhados de cálculos apropriados, do evento em sua forma projetada, final.
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A consciência do futuro é o hábito mental — bem como a corrupção intelectual  por excelência desse século, tal como a consciência histórica, conforme observou Nietzsche, transformou o pensamento do século XIX. A capacidade de avaliar o modo pela qual as coisas evoluirão no futuro é o subproduto inevitável de uma compreensão mais sofisticada (quantificável, testável) dos processos, tanto sociais quanto científicos. A capacidade de projetar eventos futuros com certo grau de precisão ampliou a própria definição de poder, por ser ampla fonte de instruções a respeito da maneira de se lidar com o presente. Mas, na verdade, a capacidade de antever o futuro, antes associada à noção de progresso linear, transformou-se  com a aquisição de um volume de conhecimentos maior do que se poderia imaginar  numa visão da catástrofe.
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Susan Sontag, in: Doença como Metáfora / Aids e suas Metáforas.
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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

"Porquanto, como conhecer as coisas senão sendo-as?"

Bataille de Fleurs, Marc Chagall, 1967
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Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo de manhã!
Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar com as crianças.
Olhar as flores, ver os bondes passarem cheios de gente,
E, encostado no rosto de casas, sorrir...

Saber que o céu está lá em cima.
Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão perfeitas.
Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela igreja.
Ver pessoas rindo. Ver os namorados cheios de ilusões.

Sair andando à toa entre plantas e os animais.
Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas mais apagadas.
Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.

Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas calçadas, nas quitandas.
Ver gente conversando na esquina, falando de coisas ruidosas.
Ver gente discutindo comércio, futebol e contando anedotas.
Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças, enchendo as travessas.

Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que eles estão longe e ter saudades deles...

Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.
Lembrar das músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente viu.

Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto...

Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.
Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos livros lidos.

Pensar nas horas vagas, nas horas passadas lendo as poesias de Anto.
Lembrar dos poetas e imaginar a vida deles muito triste.
Imaginar a cara deles como de anjos. Pensar em Rimbaud,
Na sua fuga, na sua adolescência, nos seus cabelos cor de ouro.

Não ter ideia de voltar para casa. Lembrar que a gente,
afinal de contas,
Está vivendo muito bem e é uma criatura até feliz. Ficar admirado.
Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom de alívio,
Olhar com ternura a criação e ver-se pago de tudo.

Descobrir que, no final das contas, não se possui nenhuma queixa
E que se está sem nenhuma tristeza para dizer no momento.
Lembrar que não sente fome e que os olhos estão perfeitos.
Para falar a verdade, sentir-se quite com a vida.

(...) Como é bom a gente ter tido infância para poder lembrar-se dela
E trazer uma saudade muito esquisita escondida no coração.
Como é bom a gente ter deixado a pequena terra em que nasceu
E ter fugido para uma cidade maior, para conhecer outras vidas.
Como é bom chegar a este ponto e olhar em torno
E se sentir maior e mais orgulhoso porque já conhece outras vidas...

Como é bom lembrar-se da viagem, dos primeiros dias na cidade,
Da primeira vez que olhou o mar, da impressão de atordoamento.
Como é bom ter vindo de longe, estar agora caminhando
Pensando e respirando no meio de pessoas desconhecidas
Como é bom achar o mundo esquisito por isso, muito esquisito mesmo
E depois sorrir levemente pare ele com os seus mistérios...

Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso, exclamar.
Como tudo é tão belo e tão cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.

Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve.
A beleza que a gente vê saindo das rosas, a dor saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.

Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver no tempo.
Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar os bigodes,
Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que passara
num bar, que ouvira uma mazurca,
E agora estava ali, muito perdidamente lembrando coisas
bobas de sua pequena vida.
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Manoel de Barros.
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sábado, 12 de outubro de 2013

"... criaturas que nascem repositórios de chão e de estrelas..."

City Lights, Charles Chaplin, 1931
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"Acho que foi minha inaptidão para o diálogo que gerou o poeta. Sujeito complicado, se vou falar, uma coisa me bloqueia, me inibe, e eu corto a conversa no meio, como quem é pego defecando e o faz pela metade. Do que eu poderia dizer, resta sempre um déficit de oitenta por cento. E os vinte por cento que consigo falar não corresponde, senão ao que eu não gostaria de ter dito, – o que me deixa um saldo mortal de angústia. Mesmo desde guri, no colégio, descobri essa barreira em mim, que não posso vencer. Sou um bom escutador e um vedor melhor. Mas só trancado e sozinho é que consigo me expressar. Assim mesmo sem linearidade, por trancos, por sugestões, ambíguo – como requer a poesia."
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"A incapacidade de agir também me mutila. Sou pela metade sempre, ou menos da metade. A outra metade tenho que desforrar nas palavras. Ficar montando, em versos, pedacinhos de mim, ressentidos, caídos por aí, para que tudo afinal não se disperse. Um esforço para ficar inteiro é que é essa atividade poética. Minha poesia é hoje e foi sempre uma catação de eus perdidos e ofendidos."
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"Enquanto o mundo parir uns tipos hipobúlicos feito, por exemplo, Fernando Pessoa, resguardados pela timidez e incapazes de uma ação – as palavras não morrerão. Essas criaturas não têm outra forma de ação que em cima das palavras. Obsessiva e sadicamente as trabalha, dobrando-as até seus pés, arrastando-as no caco de vidro, até que elas sejam eles mesmos. Até que elas deem testemunho da presença deles no mundo. Quase sempre criaturas que nascem repositórios de chão e de estrelas, só sabem fabricar poesias com palavras. E ainda outras que moram ruínas viçosas por dentro, se agarram nas palavras para sobreviver."
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Manoel de Barros.
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segunda-feira, 8 de julho de 2013

"Nothing is mysterious, no human relation. Except love."

Susan Sontag, Henri Cartier-Bresson, Paris, 1972
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31/12/1957
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Sobre fazer um diário.
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É superficial entender o diário apenas como receptáculo dos pensamentos privados, secretos, de alguém — como um confidente que é surdo, mudo e analfabeto. No diário eu não apenas exprimo a mim mesma de modo mais aberto do que poderia fazer com qualquer pessoa; eu me crio.
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O diário é um veículo para o meu sentido de individualidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente) não apenas registra a minha vida real, diária, mas sim — em muitos casos  oferece uma alternativa para ela.
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Há muitas vezes uma contradição entre o sentido de nossas ações em relação a uma pessoa e o que dissemos que sentimos em relação a essa pessoa num diário. Mas isso não significa que aquilo que fazemos é superficial e só aquilo que confessamos para nós mesmos é profundo. Confissões, refiro-me a confissões sinceras, é claro, podem ser mais superficiais do que as ações. Tenho em mente agora aquilo que li hoje no diário de Harriet a meu respeito — aquela avaliação seca, injusta, impiedosa a meu respeito que conclui com ela dizendo que na verdade não gosta de mim mas que a minha paixão por ela é aceitável e oportuna. Deus sabe como isso magoa e me sinto indignada e humilhada. Raramente sabemos o que as pessoas pensam a nosso respeito (ou melhor, acham que pensam a nosso respeito)... Eu me sinto culpada por ter lido algo que não se destinava aos meus olhos? Não. Umas das principais funções (sociais) de um diário é exatamente ser lido escondido por outras pessoas, pessoas (como pais + amantes) sobre as quais o autor se mostrou cruelmente franco apenas no diário. Será que Harriet vai ler isto?
Escrever. É corruptor escrever com o intuito de moralizar, elevar os padrões morais das pessoas.
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Nada me impede de ser uma escritora, a não ser a preguiça. Uma boa escritora.
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Por que escrever é importante? Sobretudo por vaidade, eu suponho. Porque eu quero ser essa persona, uma escritora, e não porque exista alguma coisa que eu devo dizer. E no entanto por que não também isso? Com um pouco de construção do ego — como o fait accompli que este diário proporciona — eu vou superar as dificuldades para adquirir a confiam de que eu (eu) tenho algo a dizer, e que deve ser dito.
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Meu “eu” é insignificante, cauteloso, sadio demais. Bons escritores são egoístas ferozes, ao ponto mesmo da estupidez. Críticos sensatos corrigem os escritores — mas sua sensatez é parasítica da faculdade criativa dos gênios.
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Susan Sontag, in: Diários (1947-1963).
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domingo, 28 de abril de 2013

Música para curar a alma: Antony and The Johnsons


"Bird Gerhl", faixa do álbum I Am a Bird Now, 2005
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"Amor meu, a invenção constante é uma ave plena.
Mas eu não sei para que ave me dirijo."
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Maria Gabriela Llansol.
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quarta-feira, 20 de março de 2013

"submergir em sua existência, que por não ser nossa é por isso mesmo mais leve..."

California Kiss, Elliott Erwitt, 1955
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"Quando alguém está enamorado ou, mais precisamente, quando uma mulher está e além disso é no começo e o enamoramento ainda possui o atrativo da revelação, em geral somos capazes de nos interessar por qualquer assunto que interesse ou do qual nos  fale quem amamos. Não só de fingir interesse para agradá-lo ou para conquistá-lo ou para marcar nossa frágil posição, mas também para prestar verdadeira atenção e nos deixar contagiar de verdade pelo que quer que ele sinta e transmita, entusiasmo, aversão, simpatia, temor, preocupação ou até obsessão (...). De repente  nos apaixonam coisas a que jamais havíamos dedicado um pensamento, pegamos insuspeitas manias, prestamos atenção em detalhes que tinham nos passado despercebidos e que nossa percepção teria continuado omitindo até o fim dos nossos dias, centramos nossas energias em questões que só nos afetam vicariamente ou por feitiço ou por contaminação, como se decidíssemos viver numa tela ou num cenário ou no interior de um romance, num mundo alheio de ficção que nos absorve e distrai mais do que nosso mundo real, o qual deixamos temporariamente suspenso ou em segundo lugar, e de passagem descansamos dele (nada tão tentador como se entregar a outro, mesmo que só com a imaginação, e fazer nossos seus problemas e submergir em sua existência, que por não ser nossa é por isso mesmo mais leve). Talvez seja excessivo expressar a coisa assim, mas nós nos colocamos inicialmente a serviço de quem cismamos querer, ou pelo menos à sua disposição, e a maioria de nós faz isso sem malícia, isto é, ignorando que chegará um dia, se nos fortalecermos e nos sentirmos firmes, em que ele olhará desiludido e perplexo para nós ao verificar que na realidade não damos importância ao que antes nos suscitava emoção, que nos aborrece o que está nos contando, sem que ele tenha variado de temas nem que estes tenham perdido interesse. Será só que deixamos de nos esforçar em nosso entusiasmado amor inaugural, não que fingíssemos e fôssemos falsas desde o primeiro instante. Com Leopoldo nunca ouve um ápice desse esforço, porque tampouco houve um desse voluntarioso e ingênuo e incondicional amor (...)"
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Javier Marías, in: Enamoramentos.
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sábado, 2 de março de 2013

A sagração da primavera...

Le Sacre Du Printemps, Pina Bausch, © Maarten Vanden Abeele
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"Eu me banho, nutro-me da vida melhor e mais fina, pois nada é bom demais para me preparar para o instante dessa nova estação. Quero os melhores óleos e perfumes, quero a vida da melhor espécie, quero as esperas as mais delicadas (...) quero a quebra de minha carne em espírito e do espírito se quebrando em carne (...) tudo o que secretamente me adestrará para aqueles primeiros momentos que virão. Iniciada, pressinto a mudança de estação. E desejo a vida mais cheia de um fruto enorme. Dentro desse fruto que em mim se prepara (...) há lugar para a mais leve das insônias que é a minha sabedoria de bicho acordado: um véu de alerteza, esperta apenas o bastante para apenas pressentir. Que eu não esqueça, nessa minha fina luta travada, que o mais difícil de se entender é a alegria. Que eu não esqueça que a subida mais escarpada, e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria." 
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Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo.
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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

"Nada é mais claro que o amor imerso em sua ilusão..."

Amour, de Michael Haneke, 2012
para seguir com fundo musical... Montserrat Figueras, Lamento della Ninfa, Madrigali Guerrieri et Amorosi, de Claudio Monteverdi
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Difícil escrever sobre a experiência de assistir "Amour", sem cair no desagradável que são os tais spoilers. Talvez o mais importante a ser dito seja: não compre um livro pela capa. 
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Num primeiro momento o espectador desavisado pode pensar: "Amour" é sobre tudo, menos amor. Familiarizada com a filmografia do diretor Michael Haneke, algo dizia que a experiência reservaria-me mais que meia dúzia de situações clichês.
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Amor de interesses comuns, de companheirismo, de admiração, de afetividade, de gestos corriqueiros que ganham visibilidade num cenário de metáforas. Um piano. Móveis robustos de madeira forte, cd's comprados na "Virgin", discos, livros, muitos deles. Quadros. Álbuns de fotografia. Cenário de cozinha esmaecido. 
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Amor que supunha sobreviver numa atmosfera minunciosamente preparada e preservada - como se costuma fazer com o que nos é caro - cruelmente aniquilado física e emocionalmente; sem concessões. Significâncias que hoje não passam de um mausoléu frequentado por pombos.
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Amor ressignificado diante a precariedade do corpo, dos espaços e objetos de empréstimo, da perecividade, do desconhecido.
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Amor sem abstrações, em estado bruto, mas ainda assim, e mais do que tudo, amour.
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“O tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? Que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? Que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? O limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...”
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Raduan Nassar, in: Lavoura Arcaica.
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domingo, 13 de janeiro de 2013

"aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo..."

Guernica, The Woman Fleeing, (detail),  Pablo Picasso, 1937
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Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.

Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.

Apenas quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua.

Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde - torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente, as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um tédio cruel.

Boa viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado, acompanha, pode estar certa, você.
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Rubem Braga, in: A Viajante. 
Rio de Janeiro, abril de 1952.


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O cronista, que teria completado 100 anos ontem, talvez não seja tão lido quanto merece, mas tem o mérito de ter retratado o cotidiano como poucos. 
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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Há 92 anos...

'Silêncio Lispectoriano', Claudia Andujar, 1961
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–  Você tem paz, Clarice?
–  Nem pai, nem mãe.
–  Eu disse "paz". 
–  Que estranho, pensei que tivesse dito "pais". Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada.
Paz? Quem é que tem?
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Benjamin Moser, in: Clarice,
 Ed. Cosac Naify, 2009.
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domingo, 14 de outubro de 2012

Esse est percipere...

Nostalgia, direção de Andrei Tarkovsky, 1983
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"...Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou..."
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Rainer Maria Rilke, in: Cartas  a um Jovem Poeta.
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