quinta-feira, 19 de junho de 2014

"... porque el amor es una cosa y la palabra amor es otra cosa/ y sólo el alma sabe dónde las dos se encuentran/ y cuándo/ y cómo..."

... I Went to the Garden of Love I, Evelyn Williams,2000
.
.
.
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.
.
.
Herberto Helder.
Tríptico II.
.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"parecia que a alma toda se sacudia..."

View, Antony Gormley, 1985
.
.
.
"Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e ainda assim, estava no mesmo lugar! Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas..."
.
João Guimarães Rosa, in: Manuelzão e Miguilim.
.
.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

"... Lá de fora é de dentro para quem olha..."

 Newman, Mark Rothko, 1949
.
.
.
Esta vibração verde é uma planta envolta em ar
este verde é o ar que perfuma
este perfume é a linguagem da planta

Eu não sou nada
se não sou a planta 
o ar
a fragrância
e nada é nada
se não se vê que nada é nada
aqui
agora

Um menino brinca no gramado
escolhe uma árvore
outra
outra
vai de uma árvore até o meio do jardim
corre até outra árvore
até outra
volta ao centro

Um pássaro canta
e lá de fora
árvores menino e pássaro
não são isso

Lá de fora é 
de dentro
para quem olha como quem
luta
como quem
passa através de nenhum 
obstáculo

A prova mais dura
o salto que consiste em
ficar imóvel à margem da 
plenitude sem margens
que
(a plenitude)
não existe como imagem nem suporte

E então 
o menino chega até a árvore
e se entende que não havia pássaro cantando
que o canto era esse nome
que recebe esse ato
para quem está olhando como quem 
ama
como quem
vive
como quem
sabe que as árvores
a verde vibração
que é a planta
envolta em ar
o salvam de ser aquilo
que todo o resto insiste em dar-lhe
a partir de sapatos
mulheres
espetáculos
dias

O que olha é agora o olhado
mas o menino
escolhe novamente uma árvore
corre e retorna
e outra vez corre e volta

O olhado fica para lá
e o que olhava volta a ser aquele que olha

Até que algum dia quem sabe
Até que não haja retorno
.
Julio Cortázar.
.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails