sexta-feira, 29 de março de 2019

"Je me souviens pendant que je vie..."

Agnès Varda (30/05/1928 - 29/03/2019)
© Micheline Pelletier: on the set of Vagabond/Sans Toit ni Loi, 1985.
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Quando o não-ser fica em suspense
abre-se a vida esse parêntese
com um gemido universal de fome
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somos famintos desde o vamos

e o seremos até o vamo-nos
depois de muito descobrir
e brevemente amar e acostumar-nos
à falida eternidade
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a vida se encerra em vida

a vida esse parêntese
também se fecha..........incorre
em um gemido universal
o último
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e então somente então

o não-se segue para sempre.
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Mario Benedetti. 
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domingo, 24 de março de 2019

Retrato do artista enquanto sujeito: Lawrence Ferlinghetti

Lawrence Ferlinghetti, poeta, editor, pintor e ativista americano, completando 100 anos hoje
© documentário "Ferlinghetti: A Rebirth of Wonder", dir. Christopher Felver, 2009.
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Infinda a esplêndida vida do mundo
Infindos seus lindos seus vivos seus vividos
seus lindos seres vivos
ouvindo e vendo pensando e sentindo
dançando e rindo soluçando e ganindo
por tardes infindas infindas noites
de amor e êxtase júbilo e agonia
bebendo e queimando falando e cantando
em infindas Amsterdãs da existência
com infindos diálogos animados
sobre infindas xícaras de café
em clubes literários nas manhãs de chuva
Infindos filmes das ruas passando
em carros e trens de desejo
nas infindas trilhas da luz
E infindos cabelos longos dançando
ao som do punk rock e da discô
através de Vias Lácteas meia-noites
até os Paradisos da madrugada
falando e fumando e pensando
do tudo infindo da noite
no alvo leite da noite a luz da noite
Ah sim oh sim o infindo viver e amar

odiar e amar beijar e matar
Infinda a tique-taque respira tritura
máquina-carne da vida
gira-girando através do tempo
Infinda vida e infinda morte
infindo ar e infindo respirar
Infindos mundos de dias sem fim
nas capitais de outono
avenidas de folhas em chamas
Infindos sonhos e sonos se desenrolando
as camisas-de-força da angústia
os labirintos do pensamento
os 'labirictus' de amor
os caracóis do desejo e da saudade
miríades de infindos jogos do inominável
Infindos os céus em chamas
infindo universo se desenrolando
Mundo sobre uma pira de cogumelos 
Infindo o fogo que resfolega em nós
comedores-de-fogo dançando nas praças
engolindo o ar queimando gasolina
Enfrente o bate coração da vida em chamas
seus bateres e pulsares e desapareceres 
Infindos os campos abertos dos sentidos
o cheiro de porra e amor

o miau e miau dos gatos no cio
o cheiro de quero no meio
Fim nenhum ao som que faz amor
ao som das camas estralando
ao som dos amantes amando e amando isso
o som passando pelas paredes de noite
Fim nenhum a seus ahs de êxtase (...)

Infindo o som desta vida do homem na terra
seus infindos programas de rádio e transmissões de tv
jornais escorrendo dos infindos rolos
das rotativas
o fluir das suas palavras e imagens
em infindas fitas de máquinas de escrever
escritas automáticas e garranchos
infindos poèmes dictés pelo desconhecido
Infindos os telefonemas de leste a oeste
a espera dos amantes nas plataformas de trem
o canto das aves nas colinas e telhados
o crau crau dos corvos no céu
as miríades de cricrilares de grilos
os mares fluentes  as águas chorando
subindo e descendo em distantes moinhos
murmúrio das mares
nos Idos do outono
beijo e sal da criação (...)

Infindo o mastigar
nos sanduíches de carne da luxúria
os bifes suculentos do amor
infindas fantasias e orgasmos
ritos de fertilidade e ritos de passagem (...)

Infindas as variações íntimas 
do totalmente íntimo
os fogos da juventude as brasas da idade
a raiva do poeta nascido de novo
Sem fim sem fim toda e qualquer criatura
na dança muda das moléculas
Tudo transmuda Tudo muda
e tudo brada mais e mais
Infinda a esperança por Deus e Godot (...)

Pois não há fim para as escolhas da esperança 
ainda por escolher (...)
E não há fim
para as portas da percepção ainda por abrir
e os jatos de luz
na estratosfera do espírito do homem 
no espaço sideral dentro de nós
na Amsterdã  do yin & yang
Rubayats sem fim e infindas bem-aventuranças
infindos shangrilas infindos nirvanas
sutras e mantras
satoris e sansaras
Bodhiramas e Boddhisatvas
karmas e karmapas!
Infindas danças de Shiva cantando
entre as brumas do útero do êxtase!
Brilho! Transcendente!
na cristal noite do tempo

no infindo silêncio da alma
no longo alto conto do homem
em seu infindo som e fúria
significando tudo
com suas infindas alucinações
ereções e exibições
fascismo e machismo
circos da alma perdida 
rodas-gigantes da imaginação
coney island dos sem-mente
infindo poema ditado
pela voz avulsa
do inconsciente coletivo
brilhe borrando sobre as trilhas do tempo!

Nos últimos dias de Alexandria
Os dias antes de Waterloo
Tudo continua dançando
Tem um som de festa hoje à noite.
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Trechos do poema Vida Infinda.
Amsterdã, julho de 1980.
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