domingo, 29 de abril de 2012

"Olhar o rio feito de tempo e água, e recordar que o tempo é outro rio..."

 Ulysses Deriding Polyphemus, William Turner, 1829
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Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E nossas faces passam como a água.
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Perceber que a vigília é outro sonho

Que sonha não sonhar, e que essa morte
Que a nossa carne teme é a mesma morte
De toda noite, que se chama sonho.
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Vislumbrar num dia ou num ano um símbolo

dos dias dos homens e de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.
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Ver na morte o sonho, entrever no ocaso

Um triste ouro, sendo assim a poesia
Que é imortal e pobre. Pois a poesia
Volta sempre, tal como a aurora e o ocaso.
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Às vezes durante as tardes um rosto

Nos olha do mais fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nosso próprio rosto.
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Contam que Ulisses, farto de prodígios,

Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Tão verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, sem prodígios.
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Também é como o rio interminável,

Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
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Jorge Luis Borges.
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terça-feira, 24 de abril de 2012

"... sentir é como o céu, vê-se mas não há nele que ver."

 False Mirror, René Magritte, 1928
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"Como ter leveza ao falar do coração dentro de uma cultura que se autodefine e se autocensura como uma cultura da cordialidade? Como nomear o outro diante de si mesmo, nomear-se outro diante de si mesmo? (...).
Uma vez que o coração esta na origem, começo por voltar a ele. Mas na direção dele o caminho não é tranquilo."
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Evando Nascimento, in: Jacques Derrida, Pensar a Desconstrução.
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terça-feira, 17 de abril de 2012

"A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."

Winged Victory of Samothrace, 190 a.C
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"E se sou líquida como é líquido o informe, antes sou gotas de mercúrio do termômetro quebrado líquido metal que se faz círculo cheio de si e igual a si mesmo no centro e na superfície, prata que tomba e não derrama, liquidez sem umidade."
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Clarice Lispector apud Olga Borelli, in: Esboço para um Possível Retrato.
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domingo, 15 de abril de 2012

"Quando a memória transformada em ave pousar sobre o meu peito a sua leveza."


The Hours,
direção de Stephen Daldry, 2002
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E o tempo tomou forma. Assim me soube
Envolta em grande mar até a cintura.

E nada a não ser água e seu rumor
Aos ouvidos chegava. E soube ainda
Que um só gesto e sopro acrescentava
Essa vastíssima matéria. E atenta
Em consideração a mim, cobri-me de recuos.
Eu, que de docilidade me fizera

Antes avara desse tempo que resta.
Se em muitos me perdi, uma que sou
É argamassa e pedra (...)

Há certos rios que é preciso rever.
Por isso volto... àquelas margens
Onde na sombra um verde descansava (...)
Volto, seguindo a viagem
De mim mesma e aos poucos convergindo
Oculta, vária,
Até fechar um círculo e entender
Essa asa de fogo sobre as coisas.
Talvez neste canto eu te direi
Das estreitas passagens, do lodo
Convulsivo dos ancoradouros, dos funerais
Que vi, para chegar à luz da primeira paisagem.
Meu olhos deram volta à ilha.
Sigo pelos caminhos, transfiguro-me

Sei que um igual destino eu já cumpri
E ao mesmo tempo em tudo me descubro
Casta e incorpórea. Sou tantas,
Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me (...)

Olhai o que mais vos convém.
Em tudo, o todo que sois feito
Se mantém. Pórticos, escadas
Ave sob um teto de chumbo,
O que estiver à tona, o mais fundo,
Ventre, ombro.

O caminho de dentro
é um grande espaço-tempo (...)

Àquele grande e pausado passo de ave que se parece.
Ah, que dor de ter assim um todo na memória
Que dor na fluidez do tempo e a mesma hora se fazendo sempre (...)

Hilda Hilst, fragmentos do poema "Memória".
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quinta-feira, 12 de abril de 2012

Decair: v. intr. Diminuir pouco a pouco; Enfraquecer; Entrar em decadência.

Icarus, from the series The Four Disgracers, Hendrick Goltzius, 1588
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"Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas se tornaram mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas... por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados... Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos.
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Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?"
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Paul Valery.
citação do prefácio do livro "Modernidade Líquida", do Zygmunt Bauman.
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