sexta-feira, 27 de abril de 2018

"Que alheias cicatrizes?"

The Play of Life (Self-portrait), Pierre Dubreuil, circa 1930
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Cheguei demasiadamente tarde
e já todos se tinham ido embora,
identidade, sujidade, eternidade.
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Comeram o meu corpo e
beberam o meu sangue; e pelo caminho, a minha biblioteca;
e escreveram a minha Obra Completa;
sobre, desapossado, eu.

Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (talvez o coração) desacertaria.

Pôr-me aos tiros na cara como Chamfort?
Dar e aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Pormodernizar-me? Experienciar-me?

Com que palavras e sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.

Cheira excessivamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.

Que dia? Que olhar?
(Beckett, Dias felizes)
Que feridas? Que estandar-
te? Que alheias cicatrizes?

Estou diante de uma porta (de uma forma)
com o como dizer? coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.
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Manuel António Pina.
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