segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Há 92 anos...

'Silêncio Lispectoriano', Claudia Andujar, 1961
.
.
.
–  Você tem paz, Clarice?
–  Nem pai, nem mãe.
–  Eu disse "paz". 
–  Que estranho, pensei que tivesse dito "pais". Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada.
Paz? Quem é que tem?
.
.
Benjamin Moser, in: Clarice,
 Ed. Cosac Naify, 2009.
.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Ressignificação do tempo...

Chronos, Franz Ignaz Günther, 1765-70
.
.
.
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo das galerias que não percorremos
Em direção à porta que jamais abrimos
Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança.
Mas com que fim
Perturbam elas a poeira sobre uma taça de pétalas.
Não sei.
Outros ecos
Se aninham no jardim. Seguiremos?
Depressa, disse o pássaro, procura-os, procura-os
Na curva do caminho. Pela primeira porta,
Aberta ao nosso mundo primeiro, aceitaremos
A trapaça do tordo? Em nosso mundo primeiro,
Lá estavam eles, dignificados e invisíveis,
Movendo-se imponderáveis sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E o pássaro cantou, em resposta
À inaudita música oculta na folhagem.
E um radiante olhar impressentido trespassou o espaço,
porque as rosas
Tinham a aparência de flores contempladas.
Lá estavam eles, como nossos hóspedes, acolhidos e acolhedores.
Assim, caminhamos, lado a lado, em solene postura,
Ao longo da alameda deserta, rumo à cerca de buxos,
Para mergulhar os olhos no tanque agora seco.
Seco o tanque, concreto seco, calcinados bordos,
E o tanque inundado pela água da luz solar,
E os lótus se erguiam, docemente, docemente,
A superfície flamejou no coração da luz,
E eles atrás de nós, refletidos no tanque.
Passou então uma nuvem, e o tanque esvaziou.
Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças,
Maliciosamente escondidas, a reprimir o riso.
Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano
Não pode suportar tanta realidade.
O tempo passado e o tempo futuro,
O que poderia ter sido e o que foi,
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
.
.
T. S. Eliot, Four Quartets 1: Burnt Norton.
.   

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

"Os rios de um dia."

 Sertão Sem Fim, Araquém Alcântara, 2008
.
.
.
Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo:
o rio o corre; e pois que com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo.
   
Pois isso, que ele define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros;
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede.
.
.
João Cabral de Melo Neto.
.
.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

"Serão esses caminhos somente des-caminhos, des-caminhos de ti a ti?"

 "Corriendo por la Playa", Joaquín Sorolla y Bastida, 1908
.
.
.
"...Quando então se pensa em poemas, tomam-se tais caminhos com poemas? Serão esses caminhos somente des-caminhos, des-caminhos de ti a ti? Mas ao mesmo tempo são também, em tantos outros caminhos, caminhos nos quais a língua se torna sonora, são encontros, encontros de uma voz com um Tu perceptível, caminhos de criaturas, esboços de existência talvez, um antecipar-se para si mesmo, à procura de si mesmo... Uma espécie de volta à casa..."
.
Paul Celan.
.

sábado, 3 de novembro de 2012

sábado, 27 de outubro de 2012

"Ninguém perde (repetes em vão) senão quem não tem e que não teve nunca..."

 Acrobat with bouquet, Marc Chagall, 1963

.
.
.
Já não é mágico o mundo. Te deixaram.    
Já não partilharás a clara lua                      
nem os lentos jardins. Já não há uma        
lua que não seja espelho do passado,       
cristal de solidão, sol de agonias.              
Adeus às mútuas mãos e as têmporas       
que aproximavam no amor. Hoje só tens    
a fiel memória e os desertos dias.             
Ninguém perde (repetes em vão)              
senão quem não tem e que não teve        
nunca, mas não basta ser valente              
para aprender a arte do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa, te desgarra           
e te pode matar uma guitarra.                    
.
.
II
.
.
Já não serei feliz. Talvez não importe.       
Há tantas outras coisas no mundo;            
Um instante qualquer é mais profundo       
e diverso que o mar. A vida é curta              
e ainda que as horas sejam tão longas, uma
escura maravilha nos ronda,                        
a morte, esse outro mar, essa outra flecha  
que nos livra do sol e da lua                          
e do amor. A sorte que me deste                  
e me tiras-te deve ser apagada;                   
o que era tudo tem que ser nada                  
Só me resta o gozo de estar triste               
esse inútil costume que me inclina              
ao sul, a certa porta, a certa esquina.
.
.       
Jorge Luis Borges.
.
.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

"Pensem nas feridas como rosas cálidas..."

 .
 .
 .
.
.
.
algumas flores
teimam em viver
apesar do tempo
apesar do peso
apesar da morte
apesar de algumas
que teimam em morrer
apesar de tudo

Alice Ruiz.
.
.

domingo, 14 de outubro de 2012

Esse est percipere...

Nostalgia, direção de Andrei Tarkovsky, 1983
.
.
.
"...Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou..."
.
.
Rainer Maria Rilke, in: Cartas  a um Jovem Poeta.
.
.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

(( Incomunicabilidade ))

  The Mute, Louise Bourgeois, 2002
.
.
.
Querer que qualquer um seja sensível ao nosso mundo íntimo é o mesmo que estar sentindo um zumbido no ouvido e pensar que o nosso vizinho de ônibus o possa escutar.
.
.
Mário Quintana, in: A Vaca e o Hipocrifo.
.
.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

"O que é o não sentido? Doença que mais se propaga."

 The Sense of Sight, Annie Louisa Swynnerton, 1895
.
.
.
O que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas que o pó desenhou.



O que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento.

 

O que é o vento?
alma que não quer
habitar o corpo.

 

O que é a morte?
Carro que leva
Do útero da mãe
Ao útero da terra.

 

O que é o arco-íris?
Corpo de nuvem e
Corpo de sol
Abraçados arqueados
Sobre o corpo da terra.

 

O que é a onda
Imagens em movimento
Na tela do mar.

 

O que é o sonho?
Elevar o real
Ao nível da fantasia.

 

O que é o pó?
Futuro do corpo.

 

O que é o anoitecer?
Discurso de despedida.

 

O que é a lágrima?
Guerra perdida pelo corpo.

 

O que é o desespero?
Descrição da vida na língua da morte.

 

O que é o horizonte?
espaço que se move sem parar.
    
 

O que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos
sem se saber.

 

O que é o não sentido?
Doença
Que mais se propaga.

 

O que é a existência?
O que requer sempre
Revisão.

 

O que é a pobreza?
Tumba ambulante sobre a terra.
 


O que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes.

 

O que é a poesia?
navios que navegam, sem portos.   

 

O que é a memória?
Casa habitada só
Por coisas ausentes.

 

O que é viver?
Caminhar sem pausa
Rumo ao anoitecer.

 

O que é a história?
Cego a tocar tambor.

 

O que é a chuva?
Último viajante
A descer
Do trem das nuvens.

 

O que é o rosto?
Porto mais próximo para a migração da lágrima.

 

O que é a melancolia?
Anoitecer
No espaço do corpo.


O que é o tempo?
Veste que usamos
Sem poder tirar.

 

O que é a linha reta?
Soma de linhas tortas
Invisíveis.

 

O que á a metáfora?
Asas aliviando
No peito das palavras.

 

O que é o sentido?
Início do não sentido
E seu fim.
.

.
Adonis, 

Trechos do poema "Guia para Viajar pelas Florestas do Sentido".
.
.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Alienismos...

 The Extraction of the Stone of Madness or The Cure of Folly (detail), Hieronymus Bosch, 1475-1480
.
.
.
"Sanidade é uma mentira aconchegante."
Susan Sontag.




* * *

Importante: Estou ajustando as imagens dos posts à nova interface do blogspot. Infelizmente excluíram a opção de dimensioná-las manualmente. Queiram desculpar-me também por ocasionais links corrompidos. Toda e qualquer modificação nos gadgets não está sendo salva... Até que tudo se normalize, obrigada pela compreensão.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

"O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto, as coisas sabem as coisas..."

Play of Lights, Louis Fleckentein, 1912
.
.
.
Personagem de seus personagens, autora e leitora de seu próprio livro, que nele e através dele se recapitula, Clarice Lispector, ortônima no meio de seus heterônimos, finalmente se inscreve no fecho da obra, escrevendo o antecipado epitáfio, por onde começa e acaba o texto de Um Sopro de Vida:


Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste começo. Quer dizer que o fim, que não deve ser lido antes, se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter lido o livro, cortei muito mais que a metade, só deixei o que me provoca e inspira para a vida: estrela acesa ao entardecer. (...) No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim uma aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malgrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.
.
.
Benedito Nunes, in: O Drama da Linguagem, uma leitura de Clarice Lispector.
.
.

domingo, 23 de setembro de 2012

"... prefiro a vigília antes que ter repouso."

Three medlars with a butterfly, Adriaen Coorte, 1705
.
.
.
É preciso fé para cortar as unhas,
cuidar dos dentes como bens de empréstimo.
O cobrador invisível bate à porta.
Não durmo, ele também não.
Deve ser amor o que nos deixa unidos
neste avesso de mística.
Por orgulho de pobre
dou por bastante a pouca claridade
e prefiro a vigília antes que ter repouso.

.
.
Adélia Prado, in: A Duração do Dia.

.
.

sábado, 15 de setembro de 2012

(( Amor fati ))


Liebestod, aria final da Ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner
Jessye Norman e Filarmônica de Viena, com a regência de Herbert von Karajan
.
.
.

Eis o que consegui:
tudo estava partido e então
juntei tudo em ti

toda minha fortuna
quase nada tudo muitas coisas
numa

só:
eu quis correr o risco antes de virar
pó:

juntar tudo em ti:
toda joia todo pen drive todo cisco
tudo o que ganhei tudo o que perdi

meu corpo minha cabeça meu livro meu disco
meu pânico meu tônico
meu endereço
eletrônico

meu número meu nome meu endereço
físico
meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo
o mar o sol a noite a ilha
o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente
meio aqui
e meio ausente

meu continente meu conteúdo
e além de todo mundo
também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança
algo que fica
algo que dança

o que sei o que ignoro
o que rio
e o que choro

toda paixão
todo meu ver
todo meu não

tudo estava perdido e aí
juntei tudo
em ti
.
.

Antonio Cícero,
poema do livro Porventura, Ed. Record, 2012.
.
.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

domingo, 2 de setembro de 2012

"Vou-me embora pra Pasárgada..."


"O Poeta do Castelo", Manuel Bandeira em documentário de 1959,
direção de João Pedro de Andrade

.
.
.

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
.
.
Manuel Bandeira.
.
.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails