domingo, 15 de abril de 2012

"Quando a memória transformada em ave pousar sobre o meu peito a sua leveza."


The Hours,
direção de Stephen Daldry, 2002
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E o tempo tomou forma. Assim me soube
Envolta em grande mar até a cintura.

E nada a não ser água e seu rumor
Aos ouvidos chegava. E soube ainda
Que um só gesto e sopro acrescentava
Essa vastíssima matéria. E atenta
Em consideração a mim, cobri-me de recuos.
Eu, que de docilidade me fizera

Antes avara desse tempo que resta.
Se em muitos me perdi, uma que sou
É argamassa e pedra (...)

Há certos rios que é preciso rever.
Por isso volto... àquelas margens
Onde na sombra um verde descansava (...)
Volto, seguindo a viagem
De mim mesma e aos poucos convergindo
Oculta, vária,
Até fechar um círculo e entender
Essa asa de fogo sobre as coisas.
Talvez neste canto eu te direi
Das estreitas passagens, do lodo
Convulsivo dos ancoradouros, dos funerais
Que vi, para chegar à luz da primeira paisagem.
Meu olhos deram volta à ilha.
Sigo pelos caminhos, transfiguro-me

Sei que um igual destino eu já cumpri
E ao mesmo tempo em tudo me descubro
Casta e incorpórea. Sou tantas,
Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me (...)

Olhai o que mais vos convém.
Em tudo, o todo que sois feito
Se mantém. Pórticos, escadas
Ave sob um teto de chumbo,
O que estiver à tona, o mais fundo,
Ventre, ombro.

O caminho de dentro
é um grande espaço-tempo (...)

Àquele grande e pausado passo de ave que se parece.
Ah, que dor de ter assim um todo na memória
Que dor na fluidez do tempo e a mesma hora se fazendo sempre (...)

Hilda Hilst, fragmentos do poema "Memória".
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