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31/12/1957
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Sobre
fazer um diário.
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É superficial entender o diário apenas como receptáculo dos pensamentos privados,
secretos, de alguém — como um
confidente que é surdo, mudo e analfabeto. No diário eu não apenas exprimo a
mim mesma de modo mais aberto do que poderia fazer com qualquer pessoa; eu me
crio.
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O
diário é um veículo para o meu sentido de individualidade. Ele me representa
como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente) não
apenas registra a minha vida real, diária, mas sim — em muitos casos — oferece uma alternativa para ela.
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Há
muitas vezes uma contradição entre o sentido de nossas ações em relação a uma
pessoa e o que dissemos que sentimos em relação a essa pessoa num diário. Mas
isso não significa que aquilo que fazemos é superficial e só aquilo que
confessamos para nós mesmos é profundo. Confissões, refiro-me a confissões
sinceras, é claro, podem ser mais superficiais do que as ações. Tenho em mente
agora aquilo que li hoje no diário de Harriet a meu respeito — aquela avaliação seca, injusta,
impiedosa a meu respeito que conclui com ela dizendo que na verdade não gosta
de mim mas que a minha paixão por ela é aceitável e oportuna. Deus sabe como
isso magoa e me sinto indignada e humilhada. Raramente sabemos o que as pessoas
pensam a nosso respeito (ou melhor, acham que pensam a nosso respeito)... Eu me
sinto culpada por ter lido algo que não se destinava aos meus olhos? Não. Umas das
principais funções (sociais) de um diário é exatamente ser lido escondido por
outras pessoas, pessoas (como pais + amantes) sobre as quais o autor se mostrou
cruelmente franco apenas no diário. Será que Harriet vai ler isto?
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Escrever.
É corruptor escrever com o intuito de moralizar, elevar os padrões morais das
pessoas.
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Nada
me impede de ser uma escritora, a não ser a preguiça. Uma boa escritora.
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Por
que escrever é importante? Sobretudo por vaidade, eu suponho. Porque eu quero
ser essa persona, uma escritora, e
não porque exista alguma coisa que eu devo dizer. E no entanto por que não
também isso? Com um pouco de construção do ego — como o fait
accompli que este diário proporciona — eu vou superar as dificuldades para adquirir a confiam de que
eu (eu) tenho algo a dizer, e que deve ser dito.
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Meu
“eu” é insignificante, cauteloso, sadio demais. Bons escritores são egoístas
ferozes, ao ponto mesmo da estupidez. Críticos sensatos corrigem os escritores — mas sua sensatez é parasítica da
faculdade criativa dos gênios.
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Susan Sontag, in: Diários (1947-1963).
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