sábado, 27 de julho de 2013

"...antes essa memória aberta com um olho ou a clareira de uma órbita ossosa que vos deixa ver sem vos mostrar absolutamente nada."

The Blind Man's Meal, Picasso, 1903
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O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
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Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
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Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
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Ele lê - pois já não pode parar -
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
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Ele gostaria de omitir - embora seja impossível -
todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
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Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
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Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.
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Wislawa Szymborska.
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