The Triumph of Music, Marc Chagall, 1967
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A
música é só música, eu sei. Não há
outros
termos em que falar dela a não ser que
ela
mesma seja menos que si mesma. Mas
o
caso é que falar de música em tais termos
é
como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo
ou sem sequer havê-lo visto alguma vez.
Vejamo-lo,
bem sei, calados, vendo. E se a música
for
música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum
silêncio recolhido nos persiste para além
de
alguns minutos. E não dura na memória como
silêncio.
Ou, se dura, esse silêncio cala
a
própria música que adora. Porque a música
não
é silêncio mas silêncio que
anuncia
ou prenuncia o som e o ritmo.
Se
os sons, porém, não são de devaneio,
e
sim a inteligência que no abstracto busca
ad
infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se
tudo se organiza como a variada imagem
de
uma ideia despojada de sentido;
se
tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que
os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem
necessários; se tudo repercute como
em
cânones cada vez mais complexos que não desenvolvem
um
raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se
tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas
em volutas brancas e douradas cujos
recantos
de sombra são um trompe l’oeil
para
que elas mais sejam em paredes curvas;
se
uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater
nas teclas em cascatas de ordem;
e
se tudo existiu na música para tal triunfo
e
dele descende tudo o que de arquitectura
possa
existir em notas sem sentido — COMO
não
proclamar que essa grandeza imensa
não
se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que
não haja segredo em nada que se faça
a
não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é
como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos
ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior
do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda
que volte ao tema inicial, repete
o
que foi proposto como tema para
se transformar no tempo que contém. Quando,
no fim,
aquele tema retorna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.
Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passe, ou porque a cúpula
se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não.
Mas sim porque
o virtual de um pensamento se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.
Um concreto de coisas exteriores — e o
espanto é esse —
igual ao que de abstracto têm as interiores
que o sejam.
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a
ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem que ouve, mas quem é?
A ponto de
nós termos sido música somente?
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Jorge de Sena.
Poema Bach: Variações Goldberg, do livro Arte de Música.
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Ouça as Variações para cravo compostas por Johann Sebastian Bach, em 1741, interpretadas por Glenn Gould.