segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Os Semelhantes...

Parecenças incomuns, Diego Rivera e Frida Kahlo
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Forçar-se a agir contrariamente ao que julga coerente ou predileto é uma forma de constrangimento tal, quase uma violência. Foi o que pensei ao pegar o metrô dia desses. Considero-o um meio de transporte civilizado e ágil, mas não tenho o hábito de apanhá-lo.
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Me incomoda muitíssimo a sua internalidade. Aquele ar pesado. A ausência do movimento frenético da superfície, da visão da cidade e seus contornos, mesmo das inconstâncias climáticas. O que há para se fazer num deslocamento subterrâneo? Certamente ler ou escutar música seriam bons escapismos, mas estava despreparada de ambos. Comecei então a observar quem entrava e saía. Um hábito legítimo, afinal. Algo que me dispersa do sentido de tempo e espaço.
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Não é um tipo de observação alcoviteira. É quase utópica. Imagino qual a história daqueles, cujos rostos serão esquecidos na próxima esquina. Deduzo pelas rugas nos semblantes alguma alegria invulgar, apreensão, desconforto, tédio, mansidão. Por vezes um "por favor, obrigada", "com licença" ou "boa qualquer coisa", dão indícios de educação elementar.
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Os trajes também auxiliam a constituição dos retratos. Colarinhos puídos, sapatos opacos de sola gasta, unhas por fazer, cabelos desgrenhados, dão uma inexorável sensação de desleixo. Logo vem à cabeça: por qual desgosto terá passado, para que soe assim tão displicente da vida? Em contrapartida, "o outro" adiante, é ainda mais enigmático, impecavelmente bem vestido e com ar pomposo. Seria só vaidade ou autoafirmação de quem gosta pouco de si?
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O contraditório homem de terno italiano desceu duas estações depois. A mesma em que embarcou aquele casal tão estranho. Percebi que aqueles aos quais meus olhos já haviam radiografado, flertavam menos indulgentes com o meu passatempo. Provavelmente só enxergavam o abismo harmonioso entre os dois.
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Ela, obesa e atarracada. Percebia-se no rosto esticado e branco, algo em torno dos 35 anos. Ainda na face, reluziam óculos de armação fina e feições fortes, pouco simétricas. Trajava um vestido florido que lhe cobria a opulência do corpo com elegância. Uma verdadeira matrona italiana de quadris largos, uma parideira.
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Ele, magro e longilíneo. Possivelmente com os mesmos pares de anos dela. Vestia jeans lavado e uma camisa rosa-bebê. As feições delicadas, quase femininas e olhos doces. Na verdade, doce era o olhar que ele destinava a ela. Tinha uma certa idolatria naquele olhar. Eles estavam apaixonados inegavelmente. Assim como era inegável os olhares aturdidos, incrédulos da união pouco comum.
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Quem afinal constituiu que há de haver sincronismo físico entre os enamorados? Que só nos apaixonamos por clones rebuscados de nossa imagem ou pelo modelo estético vigente? Que tolice. As pessoas apenas se atraem por motivos que a maioria desconhece. O resto é teoria.
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Era o que ela deveria pensar, enquanto segurava um livro da Anne Sexton (realmente a amei por isso) e, conversava ininterruptamente com ele num tom de voz pouco audível, e gestos leves.
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"Next, Botafogo Station", avisou a locutora do metrô. Dirigi-me à porta ávida por ar, quando vi cair um marcador de livros. Abaixei e o apanhei automaticamente. Quando pus-me de pé, havia uma mão estendida pronta à recebê-lo. A moça opulenta! Retribuiu-me com um sorriso aberto e assertivo, além de um "muito obrigada" em tom melodioso.
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Já em superfície, abastecendo meus pulmões de ar carbonado, os vi seguir em direção contrária atravessando a rua. O rapaz com corpo de louva-a-deus e sua musa botticelliana.
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Seus rostos começam a desbotar, é sempre assim. Antes que aconteça, preciso escrever no verso do "retrato", qualquer coisa que seja. Talvez, "ser o que se é"...

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"Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isso com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isso com o pensamento seria achá-las todas iguais."
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Fernando Pessoa.

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