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“A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão – e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.”
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Clarice Lispector, in: Laços de Família.
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Esse mundo belo, intrínseco, caótico e quase inacessível, é revisitado no monólogo “Simplesmente Eu. Clarice Lispector”. Ainda não assisti ao espetáculo, coisa que não tardará a acontecer, assim que o vir, provavelmente compartilharei impressões.
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Algumas pessoas falam sobre si e os outros, com beleza incomum. Parecem comungar com a pluralidade do mundo. Penso que sintetizam tão bem o tempo, as transformações, os sentimentos, seus fantasmas ou mesmo os sonhos, porque respeitam a sensibilidade que possuem. As ideias assim se abrangem, por isso são belas, por isso falam diretamente como flechas que nos atingem em cheio. Aquele tipo de golpe que desarma, que paralisa. Que metaforicamente, mata de amor ou de dor.
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Peça Simplesmente Eu. Clarice Lispector
Centro Cultural Banco do Brasil
Rua Primeiro de Março, 66, Centro
Rua Primeiro de Março, 66, Centro
De quarta à domingo, às 19h. Até 4 de outubro
Ingresso: R$ 10,00
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Utopia, sf. projeto irrealizável; quimera; lugar ou posição ideal, ainda não atingida
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Para falar da incessante vocação do homem em sonhar, estréia dia 31 de agosto, segunda-feira, às 20h30, na TV Brasil, a série “Era das Utopias.”
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A conferir!
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"A questão é: quanta realidade se deve reter mesmo num mundo que se tornou inumano, se não quisermos que a humanidade se reduza a uma palavra vazia ou a um fantasma? Ou, para colocá-la de outra forma, em que medida ainda temos alguma obrigação para com o mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele?"
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Hannah Arendt, in: Homens em Tempos Sombrios.
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