quarta-feira, 27 de julho de 2016

"A tristeza das coisas é tanto maior quanto mais subtil for a sua imagem no olhar..."

In Search, Gao Xingjian, 2014
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A alegria das coisas não é a posse
mas a semelhança delas com os nossos dedos.
Nem as coisas têm forma própria
mas a que lhes dá a mão, usando-as.

A tristeza das coisas é tanto maior
quanto mais subtil for a sua imagem no olhar.
Nem o arqueólogo ama em absoluto a matéria.
O galeão levantado do lodo ou do olvido
é um objeto sem presença, ou sem destino,
por vezes capaz de trazer-nos as lágrimas.

Mas não usámos nós as coisas
até ao excesso, ou a nossa alegria
fez-se do proveito parco, do mínimo?
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Fiama Hasse Pais Brandão.
(Portugal, 1938-2007)
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domingo, 1 de maio de 2016

"está tudo obscuro, está tudo obscuro em mim..."

János Derzsi, cena da obra-prima "O Cavalo de Turim", dir. Béla Tarr, 2011
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Gostaria de descrever uma emoção simples
como alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
socorrendo-se de restos de chuva ou sol

Gostaria de descrever uma luz
que começa a nascer em mim
mas que sei não se assemelhar
a alguma estrela
pois não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta

Gostaria de descrever coragem
sem arrastar atrás de mim um velho leão
e também ansiedade
sem entornar um copo de água

para dizê-lo de outra maneira
desistiria de todas as metáforas
em troca de uma palavra
retirada do meu peito como uma costela
uma palavra
nascida dentro das fronteiras
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer – amo
eu ando às voltas como um louco
à procura de mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que apesar de tudo não é feita de água
pede água para a cara

e a raiva
diferente do fogo
pede-lhe emprestado
o tom eloquente

está tudo obscuro
está tudo obscuro
em mim
que homem de cabelo grisalho
irá separar de uma vez por todas
dizendo
isto é a essência
e isto é a matéria

adormecemos
com uma mão debaixo das nossas cabeças
e com a outra em inúmeros planetas

os nossos pés abandonam-nos
e entram na terra
com as suas pequenas raízes
que na manhã seguinte
arrancamos com dor.
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Zbigniew Herbert.
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quarta-feira, 27 de abril de 2016

"... É isto a vida: algo que se ouviu num timbre momentâneo e sobreposto ao vácuo entre as palavras, para além do som ou do sentido..."

The Triumph of Music, Marc Chagall, 1967 
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A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto alguma vez.
Vejamo-lo, bem sei, calados, vendo. E se a música
for música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum silêncio recolhido nos persiste para além
de alguns minutos. E não dura na memória como
silêncio. Ou, se dura, esse silêncio cala
a própria música que adora. Porque a música
não é silêncio mas silêncio que
anuncia ou prenuncia o som e o ritmo.
Se os sons, porém, não são de devaneio,
e sim a inteligência que no abstracto busca
ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se tudo se organiza como a variada imagem
de uma ideia despojada de sentido;
se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem necessários; se tudo repercute como
em cânones cada vez mais complexos que não desenvolvem
um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas em volutas brancas e douradas cujos
recantos de sombra são um trompe l’oeil
para que elas mais sejam em paredes curvas;
se uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater nas teclas em cascatas de ordem;
e se tudo existiu na música para tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido — COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que não haja segredo em nada que se faça
a não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda que volte ao tema inicial, repete
o que foi proposto como tema para
se transformar no tempo que contém. Quando, no fim,
aquele tema retorna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.
Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passe, ou porque a cúpula se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o virtual de um pensamento se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.
Um concreto de coisas exteriores — e o espanto é esse —
igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem que ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente?
..

Jorge de Sena.
Poema Bach: Variações Goldberg, do livro Arte de Música.
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Ouça as Variações para cravo compostas por Johann Sebastian Bach, em 1741, interpretadas por Glenn Gould.
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domingo, 24 de abril de 2016

Música para curar a alma: Ella Fitzgerald (2)

Ella Fitzgerald Sings The Cole Porter Songbook, 1956, Verve Records (Pt.1)
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Ella Fitzgerald Sings The Cole Porter Songbook, 1956, Verve Records (Pt.2)
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Nina Simone era uma força da natureza; Billie Holiday cantava como se estivesse em carne viva; Sarah Vaughan, com a melhor de todas as técnicas; mas Ella Fitzgerald era a própria música; e sua voz o mais harmonioso e afinado dos instrumentos.
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domingo, 17 de abril de 2016

sábado, 27 de fevereiro de 2016

"E aí adormecia dum sono sem remorsos e sem melancolia..."

Master Bedroom, Andrew Wyeth, 1965
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Para Madonna, que agora chamamos e já não está.

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,

nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.

Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.

Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.

Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."
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Manuel António Pina.
Poema "O Nome do Cão", do livro Todas as Palavras: poesia reunida. Ed. Assírio & Alvim, 2012.
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Retrato do artista enquanto sujeito: Mário Cesariny

Mário Cesariny de Vasconcelos, poeta e pintor português (1923-2006)
© foto de Nuno Calvet, s.d.
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(...) 
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não
dia sim dia não
devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos
técnicas mais sérias prestígios maiores
devo saber que és forte e amplo transparente e colher-te 
murmúrio flébil aureolado
que eu arranco da luz que encharca o mundo
dia sim dia não dia sim dia não 
(...)
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Mário Cesariny, 
Trecho do poema Ars Magna, do livro Manual de Prestidigitação.

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domingo, 17 de janeiro de 2016

Charlotte Rampling e um Soneto Camoniano

Charlotte Rampling, cena do filme "45 anos"dir. Andrew Haigh, 2015
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Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
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Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes, nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
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Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá m'esconde
Amor um mal que mata e não se vê:
Que dias há que n'alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doí não sei por quê.
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Luís de Camões.
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BERARDINELLI, Cleonice. Cinco Séculos de Sonetos Portugueses: de Camões a Fernando Pessoa. Ed. Casa da Palavra, 2013.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Música para curar a alma: Maria João Pires

Partita No.1 in Si Bemol Maior, BWV 825, Johann Sebastian Bach
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A chave da música de Bach: o desejo de evadir-se do tempo. A humanidade não conheceu outro gênio que tenha apresentado com maior pathos o drama da queda do tempo e a nostalgia do paraíso perdido. As evoluções de sua música dão uma grandiosa sensação de ascensão em espiral até os céus. Com Bach nos sentimos nas portas do paraíso; nunca nele. A pressão do tempo e o sofrimento do homem caído no tempo amplificam a saudade de mundos puros, mas não nos transportam para eles. O pesar pelo paraíso é tão essencial nesta música que nos perguntamos se Bach teve alguma vez lembranças que não fossem as do paraíso. Um imenso e irresistível apelo ressoa profeticamente nela e qual é o sentido desse apelo senão tirar-nos deste mundo? [...] Quem, no êxtase desta música, não tenha sentido o transitório de sua condição natural e não tenha vivido a série de mundos possíveis que se interpõem entre o paraíso e nós não entenderá por que suas tonalidades estão constituídas por beijos de anjos.
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Emil Cioran, in: O Livro das Ilusões.
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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

[ Entre muitos ]

Mujer y Máscara, Kati Horna, 1963
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Sou quem sou.
Inconcebível acaso 
Como todos os acasos.

Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.

Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.

Alguém muito menos feliz, 
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.

Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.

Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.

E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou a aversão,
ou só pena?

Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechasse os caminhos?

A sorte até agora
me tem sido favorável.

Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.

Poderia ser eu mesma  mas sem espasmo,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
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Wislawa Szymborska.
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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Rios sem discurso...

Francis Bacon, Lucian Freud, 1956-57
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Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e, porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda 
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
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O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
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João Cabral de Melo Neto.
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segunda-feira, 15 de junho de 2015

"O tempo está vivendo-me..."

Baleen, Andrew Wyeth, 1982
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Escrituras de luz investem na sombra, mais prodigiosas que meteoros.
A alta cidade irreconhecível avança sobre o campo.
Certo de minha vida e de minha morte, fito os ambiciosos e tento entendê-los.
Seu dia é ávido como o laço no ar.
Sua noite é trégua da ira de ferro, prestes a atacar.
Falam de humanidade.
Minha humanidade está em sentir que somos vozes de uma mesma penúria.
Falam de pátria.
Minha pátria é um lamento de guitarra, alguns retratos e uma velha espada,
a desvelada prece dos salgueiros nos fins de tarde.
O tempo está vivendo-me.
Mais silencioso que minha sombra, cruzo o tropel de sua exaltada cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores da manhã.
Meu nome é alguém e qualquer um.
Passo devagar, como quem vem de tão longe que não espera chegar.
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Jorge Luis Borges.
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sexta-feira, 12 de junho de 2015

"Necesitas poesía..."

Maude Banvard, The Catch, Brockton Fair, Frederick W. Glasier, 1907
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Necesitas límites mentales. No entiendo cómo, a pesar de tu dispersión, comprendes cuál es tu remedio. Necesitas no esperar. Necesitas no esperar nada de los demás. Necesitas no traficar co tu dolor. Necesitas orgullo y soledad. Necesitas castidad. Necesitas orden. Por ejemplo, las lecturas. Poesía: limitarse a Bonnefoy. Tal vez, también, seguir con Dostoievski.
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Alejandra Pizarnik,
Diarios, 21 de noviembre, de 1964
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domingo, 31 de maio de 2015

"As coisas das quais facilmente nos lembramos quando são reais, também as lembraremos sem dificuldade quando fictícias..."

Série 'Luna Vedoma', Mario Giacomelli, 1986-96
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"Sim, se, graças ao esquecimento, não pôde estabelecer nenhum laço, tecer malha alguma entre si e o momento presente, se ficou em seu lugar, em seu tempo, se conservou sua distancia, seu isolamento no côncavo de um vale ou no cimo de uma montanha, a recordação faz-nos respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado, o ar mais puro que os poetas tentaram em vão fazer reinar no Paraíso, e que não determinaria essa sensação profunda de renovação se já não houvesse sido respirado, pois os verdadeiros paraísos são os que perdemos."
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Marcel Proust, in: O Tempo Redescoberto.
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domingo, 24 de maio de 2015

Música para curar a alma: Georg Solti

La Traviata, Ato I. prelúdio, de Giuseppe Verdi, 1853
com a Orquestra da Royal Opera House, gravado em 1994
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sábado, 23 de maio de 2015

Correspondências: Mécia e Jorge de Sena.

The Cathedral, Auguste Rodin, 1908
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Lx., 10/03/1949
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Minha muito querida Mécia,
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Escrever-me-ás, como eu agora te escrevo; mas o que dizemos já não tem nem precisa de resposta. Sem ti, sabes como fico, como não sei viver, mesmo para as mínimas coisas, que todas vêm de ti, são por ti ou para ti. Saudades, sinto-as outra vez, e não são já iguais às que sentia dantes: tu me faltas, és parte de mim, que sempre o foi mas não como agora. Muitos beijos, muitos, demorados e longos do teu,
................................................................................................................ Jorge.
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Mécia de Sena/Jorge de Sena, in: Isto Tudo que Nos Rodeia (Cartas de Amor).
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Jorge e Mécia, conheceram-se em 1940 e tiveram nove filhos. Desde o falecimento do escritor, em 04 de junho de 1978, passou a cuidar incansavelmente de seu legado literário e intelectual, tendo publicado, até então, cerca de 40 volumes, entre inéditos e reedições. D. Mécia, está com 95 anos, reside em Santa Bárbara, Califórnia, na mesma casa onde viveu com Jorge de Sena, a partir de 1970, após o período de exílio no Brasil.
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domingo, 17 de maio de 2015

Música para curar a alma: Kirsten Flagstad


O Divine Redeemer, de Charles Gounod, 1893

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a gravação de Flagstad é sublime, mas vale mencionar a interpretação
ao vivo - e impecável - da mezzo-soprano Elina Garanca.
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segunda-feira, 20 de abril de 2015

enquanto houver alguém escrevendo...

A Heure de Loisir, Elizabeth Loisir, 1904
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_______ escrevo,
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis de nomear.
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Maria Gabriela Llansol.
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terça-feira, 14 de abril de 2015

Correspondências: Rilke e Lou Salomé (2)

Rainer Maria Rilke, © foto de George Bernard Shaw, 1906
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Quero viver como se o meu tempo fosse ilimitado. Quero me recolher, me retirar das ocupações efêmeras. Mas ouço vozes, vozes benevolentes, passos que se aproximam e minhas portas se abrem... As pessoas que eu procuro não podem me ajudar: elas não compreendem. O mesmo se passa com os livros: demasiado humanos, ainda... As coisas, só elas, me falam. As coisas de Rodin, as das catedrais, as da antiguidade. Todas as coisas que são perfeitas. Elas me apontaram os meus modelos: um mundo de movimento e de vida, na pura simplicidade de seu desígnio, que é o de deixar nascer as coisas.
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Rainer Maria Rilke.
Trecho de carta escrita em 08 de agosto de 1903, 
endereçada à Lou Andreas-Salomé.
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domingo, 29 de março de 2015

"Pode ser que tudo esteja bem no plural de um mundo intenso. Mas o amor é outro poder, a carne vive da sua absorta permanência..."

Herberto Helder, 23/11/1930 - 23/03/2015
© foto de Alfredo Cunha, fevereiro de 2015
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Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.


Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?

 Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. 
— Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.

 Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.

........................... — Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.
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Herbeto Helder.
Elegia Múltipla, V.
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