sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Correspondências: Florbela Espanca e Guido Battelli

Florbela de Alma da Conceição Espanca, 1824 - 1930
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Matosinhos, 03 de agosto de 1930.
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Meu querido amigo,
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Finalmente instalada e um pouco refeita da fadiga da viagem, venho agradecer-lhe a sua última carta recebida em Évora.
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Já tinha saudades de conversar consigo. É assim um católico tão convencido? Eu não sou católica, como não sou protestante nem budista, maometana ou teosofista. Não sou nada. E nem sequer poderá servir-me o preceito divino: "Aquele que me procura, já me encontrou" porque eu não procuro... O meu racionalismo à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzche, chegou-me por muito tempo. Hoje... a minha sede de infinito é maior do que eu, do que o mundo, do que tudo, e o meu espiritualismo ultrapassa o céu. Nada me chega, nada me convence, nada me enche. Sou um pobre que nenhum tesouro acha digno das suas mãos vazias. A morte, talvez... esse infinito, esse total e profundo repouso; não me queira tirar a certeza de que ela é tudo isto: seria uma maldade, quase um crime. Pense bem: eu, que não sei o que é dormir uma noite inteira, dormir muitas, dormir todas e todos os dias e todos os anos, pelos séculos dos séculos! Só esta ideia me faz sorrir. Deve ser tão bom!
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Não sei o que há em mim que me envenena todas as horas da vida. Posso dizer como Duvernois: "Ma vie c'est une promenade de prisonnier dans un chemin de ronde. Je tourne et ne vois que des murs..." Às vezes, parece que tenho qualquer missão a cumprir, qualquer coisa a fazer; mas não sei o que é, não compreendo, e esta inquietação mina-me, roi-me; esta interrogação, esta contínua busca, cada vez mais ansiosa, dentro de mim mesma, desvaira-me. Estou hoje num dos meus dias maus, não lhe devia escrever; mas, erguer todos estes fantasmas em frente da sua alma compreensiva e boa, da sua alma amiga, é um alívio e um refrigério. Perdoe o egoísmo à sua pobre Soror Saudade; hoje mais Soror Saudade do que nunca. Às vezes sinto em mim uma elevação de alma, o vôo translúcido duma emoção em que pressinto um pouco do segredo da suprema e eterna beleza; esqueço a minha miserável condição humana, e sinto-me nobre e grande como um morto. É um instante... Tudo depois é tão vago, de tal maneira solto e impreciso, de tal forma inerte e passivo, que tenho a impressão nítida de ter vindo de longe cumprir a pena do crime de ter nascido. E de todas as minhas tristezas não tenho tirado nada. Boa? Não sei... creio que não. Perdoo facilmente as ofensas, mas por indiferença e desdém: nada que me vem dos outros me toca profundamente. O amor! Ah, sim, o amor! Linda coisa para versos! A minha dolorosa experiência ensinou-me que sou só, que por mais que a gente se debruce sobre o mistério duma alma nunca o desvenda, que as palavras nada exprimem do que se quer dizer e que um grande amor, de que a gente faz o sangue e os nervos e as próprias palpitações da nossa própria vida, não passa duma pobre coisa banal e incompleta, imperfeita e absurda, que nos deixa iguais, miseravelmente iguais ao que éramos dantes, ao que continuaremos a ser. Então... para quê?...
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Tenho imensa pena de lhe não poder dizer, com verdade, que sou feliz. Lembre-se de que eu sou um canceroso: podem as várias morfinas aliviar-me, curar-me nunca. Estou doente, tenho os nervos destrambelhados. Apetecia-me agora estar longe, longe, nesse claustro de Santa Cruz da sua linda Florença. Soror Saudade sentir-se-ia ali no seu lugar; a triste monja sem fé encheria o olhar da luz suave e amortecida, toda em sedas pálidas, que a tardinha lhe trouxesse, como um divino milagre, ao seu coração chagado. Soror Saudade quereria não pensar, sobretudo não pensar, quereria pousar as mãos, devagarinho, no rebordo duma taça de mármore onde dormisse um pouco de água limpa e contemplar, entre os muros do claustro, o céu, lá no alto; em campo azul, um heráldico pombo branco, enquanto lírios muito roxos, a seus pés, inclinassem a cabeça a meditar... O meu grande amigo dirá antes que Soror Saudade precisa, indiscutivelmente, duma cela em Rilhafoles...
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Gosto imenso do seu grande Ruben Darío. Mas também são dele estes dois belos versos:
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"Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo. Ni mayor pesadumbre que la vida consciente".
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Os meus progressos em italiano! "Si on peut dire..." Mereço não 16 mas 0, ou ainda mesmo alguns décimos abaixo de 0. É muito difícil, muito, muito difícil. Eu é que tenho que lhe dar os parabéns pelo seu ótimo português: Bravo! Muito, muito bem! Achei graça à dificuldade do burel e do mel. Que trabalhos por minha causa, e que bondade a sua em se interessar assim por um bichinho tão pouco interessante como eu sou!
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Aguardo carinhosamente a promessa da sua visita. Que não fique apenas em promessa... Depressa, sim?
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Fez muito bem em ter dormido como um anjo, pois a causa da insónia seria uma ilusão como muitas... A minha boca é isso tudo só em verso... na realidade é pálida, fria e inexpressiva como a boca duma velhinha morta.
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Tinha assim um tão grande desejo que o Cristo bizantino o remoçasse? Que ideia! Para quê? Eu quereria antes que ele me envelhecesse vinte anos num só dia. Vinte anos! Tanto tempo! Que farei eu ainda de vinte anos, meu Deus?! Tanto, tanto tempo!...
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Envio-lhe os meus dois últimos sonetos. Tenho ultimamente trabalhado bastante. Charneca em Flor está pronto, visto e revisto, e não me parece mal. Que dirá o Mestre?...
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E adeus, um adeus que eu espero seja um "até breve" muito feliz.
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Bela.
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ESPANCA, Florbela. Afinado Desconcerto (contos, cartas, diários). Coleção Vera Cruz. Organização: Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002.
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* Florbela Espanca e Guido Battelli, professor de História de Literatura Italiana da Universidade de Coimbra, começaram a se corresponder em 18 de junho de 1930. Além de confidente e entusiasta, foi responsável pela tradução de seus trabalhos para o italiano e pela publicação póstuma de algumas obras, dentre elas, Charneca em Flor. No interstício entre essa carta e seu falecimento, Florbela tentou o suicídio por duas vezes. Não resistiu à terceira tentativa, arrefecendo em 08 de dezembro de 1930, dia em que completaria 36 anos.
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