Rainer Maria Rilke, desenho de Leonid Pasternak, 1900
.
.
.
.
.
.
As flores do campo que trouxe há uma semana de uma manhã maravilhosa há muito estão deitadas entre as grandes folhas de um terno mata-borrão; mas nesta hora em que as contemplo, sorriem-me como uma recordação cheia de graça esforçando-se por parecer alegres como outrora.
.
Foi uma dessas horas singulares. Horas que são como o coração de uma ilha cingida por densas florescências: para além destas muralhas primaveris, as ondas respiram quase imperceptivelmente, e não se avista um único barco que venha do passado distante, nem um só que queira continuar para o futuro.
.
O fato de se lhe dever seguir um regresso ao quotidiano não pode esbater estas horas insulares. — Elas permanecem à margem de todas as outras horas, como que vividas ao mais alto nível do ser.
.
Este tipo de existência insular e mais elevada é a meus olhos o futuro de muito poucos.
.
Uma felicidade toca, floresce ao longe,
Alastra em volta da minha solidão
E procura tecer para os meus sonhos
Um enfeite de ouro. E ainda que
A minha pobre vida esteja gelada de madrugada
Inquieta e neve dolorosa,
A hora santa virá para ela,
Um dia, da sagrada Primavera...
.
Desejaria estar já em Dorfen. A cidade é tão ruidosa, estranha. E, nos períodos de maturação interior, nada de estranho deve aflorar as nossas margens. Um dia, daqui a muitos anos, compreenderás completamente tudo o que és para mim. O que é a fonte da montanha para quem está sequioso. E se quem está sequioso é um homem íntegro e agradecido, não vai procurar frescura e força à sua claridade para voltar a partir para o novo sol; sob sua proteção e suficientemente perto para ouvir o seu canto, constrói uma cabana e permanece neste vale pacífico até que os olhos estejam cansados do sol e o seu coração transborde de riqueza e de compreensão. Eu construí cabanas e — permaneço.
.
Minha límpida fonte! Como te estou agradecido. Não quero mais ver flores, céu, sol — a não ser em ti. Tudo é absolutamente mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas margens, que — sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti — treme de frio no musgo, solitária e terna, reflete-se clara na tua bondade, vibrante, e quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que irradia da tua profundeza. E o raio de sol que chega empoeirado e único aos teus limites transfigura-se e multiplica-se em chuva de centelhas nas ondas luminosas da tua alma.
.
Foi uma dessas horas singulares. Horas que são como o coração de uma ilha cingida por densas florescências: para além destas muralhas primaveris, as ondas respiram quase imperceptivelmente, e não se avista um único barco que venha do passado distante, nem um só que queira continuar para o futuro.
.
O fato de se lhe dever seguir um regresso ao quotidiano não pode esbater estas horas insulares. — Elas permanecem à margem de todas as outras horas, como que vividas ao mais alto nível do ser.
.
Este tipo de existência insular e mais elevada é a meus olhos o futuro de muito poucos.
.
Uma felicidade toca, floresce ao longe,
Alastra em volta da minha solidão
E procura tecer para os meus sonhos
Um enfeite de ouro. E ainda que
A minha pobre vida esteja gelada de madrugada
Inquieta e neve dolorosa,
A hora santa virá para ela,
Um dia, da sagrada Primavera...
.
Desejaria estar já em Dorfen. A cidade é tão ruidosa, estranha. E, nos períodos de maturação interior, nada de estranho deve aflorar as nossas margens. Um dia, daqui a muitos anos, compreenderás completamente tudo o que és para mim. O que é a fonte da montanha para quem está sequioso. E se quem está sequioso é um homem íntegro e agradecido, não vai procurar frescura e força à sua claridade para voltar a partir para o novo sol; sob sua proteção e suficientemente perto para ouvir o seu canto, constrói uma cabana e permanece neste vale pacífico até que os olhos estejam cansados do sol e o seu coração transborde de riqueza e de compreensão. Eu construí cabanas e — permaneço.
.
Minha límpida fonte! Como te estou agradecido. Não quero mais ver flores, céu, sol — a não ser em ti. Tudo é absolutamente mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas margens, que — sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti — treme de frio no musgo, solitária e terna, reflete-se clara na tua bondade, vibrante, e quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que irradia da tua profundeza. E o raio de sol que chega empoeirado e único aos teus limites transfigura-se e multiplica-se em chuva de centelhas nas ondas luminosas da tua alma.
.
Minha límpida fonte. É através de ti que quero ver o mundo, porque, ao mesmo tempo, verei, já não o mundo, mas apenas a ti, a ti, a ti! Tu és o meu dia de festa. Quando em sonhos me junto a ti, tenho sempre flores nos cabelos. Desejaria colocar-te flores nos cabelos. Quais? Nenhuma tem a simplicidade comovente que deveria, nenhuma é suficientemente simples. Em que Maio colhê-las? — Mas creio agora que tens sempre nos cabelos uma grinalda — ou uma coroa... Nunca te vi de outro modo.
.
Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiara. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação.
.
René.
.
.
Rainer Maria, Rilke e Andreas-Salomé, Lou: Correspondência Amorosa, Trad. Manuel Alberto, Relógio D'Água Editores, 1994, Lisboa.
.
.
Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiara. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação.
.
René.
.
.
Rainer Maria, Rilke e Andreas-Salomé, Lou: Correspondência Amorosa, Trad. Manuel Alberto, Relógio D'Água Editores, 1994, Lisboa.
.
.
.
* Rilke conheceu a escritora e psicanalista russa em 1897. Mantiveram um relacionamento amoroso até 1900. Com o fim da relação, continuaram confidentes e correspondentes até 1926, ano em que Rilke faleceu.
.
* Rilke conheceu a escritora e psicanalista russa em 1897. Mantiveram um relacionamento amoroso até 1900. Com o fim da relação, continuaram confidentes e correspondentes até 1926, ano em que Rilke faleceu.
.