sábado, 27 de fevereiro de 2010

Correspondências: Fernando Pessoa e Mario de Sá Carneiro

Fernando António Nogueira de Seabra Pessoa, (1888-1935)
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Lisboa, 14 de março de 1916.
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Meu querido Sá-Carneiro,
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Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
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Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
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Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a Vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
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No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
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Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
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Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
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Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
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Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio, amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no Livro do Desassossego. Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
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As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
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Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
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De que cor será sentir?
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Milhares de abraços do seu, sempre muito seu,
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Fernando Pessoa.
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P.S. - Escrevi esta carta de um jato. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lhe mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características...
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Você acha-me razão, não é verdade?
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PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Recolha e transcricão dos textos: Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha; prefácio e organizacão: Jacinto Prado Coelho, Ática, Lisboa 1982.
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* Fernando Pessoa e o escritor Mario de Sá-Carneiro trocaram correspondências entre outubro de 1912 (quando se conheceram) e abril de 1916 (ano da morte de Mario). Durante esse período foram poucas às vezes em que se encontraram pessoalmente, as cartas foram seu maior canal de comunicação, além de base sobre a qual se consolidou a amizade.
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