É absolutamente legítimo, até mesmo necessário que, conscientemente ou não, alicercemos mecanismos de autodefesa. Mas é ainda melhor quando prescindimo-nos parcial ou totalmente deles com a mais absoluta naturalidade. Algo acerca de confiança e, sobretudo, um sentimento pacífico de que suas vulnerabilidades não se voltarão contra você.É uma dádiva.
Café Müller, Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, de 1978
cena extraída do filme "Pina", direção de Wim Wenders, 2011
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Eu-te-amo. A figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas ao repetido proferimento do grito de amor.
Eu-te-amo não tem nuanças. Dispensa as explicações, as organizações, os graus, os escrúpulos. De uma certa forma - paradoxo exorbitante da linguagem -, dizer eu-te-amo é fazer como se não existisse nenhum teatro da fala, e é uma palavra sempre verdadeira (não tem outro referente a não ser seu proferimento: é um performativo).
(Embora seja dito milhões de vezes, eu-te-amo não está no dicionário; é uma figura cuja definição não pode exceder o título.)
A palavra (a palavra-frase) só tem sentido no momento em que eu a pronuncio: não há nela outra informação a não ser seu dizer imediato: nenhuma reserva, nenhum depósito do sentido. Tudo está no lançamento: é uma "fórmula", mas essa fórmula não corresponde a nenhum ritual; as situações em que digo eu-te-amo não podem ser classificadas: eu-te-amo é irreprimível e imprevisível.
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Roland Barthes, in: Fragmentos de um Discurso Amoroso.
"Tudo está ainda mais incerto, mas sinto que agora alcancei um estado de tranquilidade interior: enquanto pudermos controlar nossos números telefônicos e não houver ninguém para atender continuaremos os três a correr para a frente e para trás ao longo destas linhas brancas, sem lugares de partida ou de chegada que façam pairar aglomerados de sensações e significados por sobre a univocidade de nossa corrida, libertos finalmente da espessura estorvadora de nossas pessoas e vozes e estado de espírito, reduzidos a sinais luminosos, único modo de ser apropriado a quem quer se identificar ao que está dizendo sem o zumbido deformante que a nossa presença ou a alheia transmite ao que dizemos.
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Verdade que o preço a ser pago é alto, mas temos que aceitá-lo: não podemos nos distinguir dos muitos sinais que passam por este caminho, cada um com um significado seu que permanece escondido e indecifrável, pois fora daqui não há mais ninguém capaz de nos receber e de nos entender."
. . . Eu também não gosto dela: há coisas bem mais importantes que [toda esta frioleira. Lendo-a, porém, com um profundo desprezo por ela, a gente descobre nela, de qualquer modo, um lugar para o que é genuíno. Mãos que podem reter, olhos que podem se ampliar, cabelos que podem se eriçar se for preciso, essas coisas são importantes, não porque uma altissonante interpretação lhes possa ser dada mas porque são utéis. Quando elas começam a derivar a ponto de se tornarem ininteligíveis, a mesma acusação pode ser feita a nós outros, que não admiramos o que não podemos entender: o morcego pendente de cabeça para baixo ou à procura de algo para comer, elefantes se empurrando, um cavalo selvagem rolando, um lobo [incansável sob uma árvore, o crítico imóvel com arrepios na pele como um cavalo que [sente uma pulga, o torcedor de baseball, o técnico em estatística... E nem vale o argumento para discriminar entre "documentos profissionais e livros escolares"; todos esses fenômenos são importantes. É preciso fazer [uma distinção, porém: quando arrastada à fama por meios-poetas, o resultado [não é poesia, a menos que os poetas entre nós possam ser "interprétes rigorosos da imaginação" - acima de insolência e trivialidades e que possam apresentar para inspeção, jardins imaginários contendo rãs verdadeiras; então [nós a teremos encontrado. Neste ínterim, se você exige para uma mão o rude material da poesia em toda a sua rudeza e para o que está na outra mão legitimidade, então você se interessa por poesia. . . Marianne Moore. . .
. . . era um poema lateral aos sentidos. ganhava formato ébrio ao nem ser escrito. longe dos pensamentos imitava uma pedra [aí as palavras drummondeavam]. longe das lógicas – com tendência vagabunda – o poema driblava lados avessos de noites e animais [aqui as sílabas manoelizam, barrentas]. mas uma estrela nunca brilha tão solitária; encarece-se também de luuandinar, miar à couto, esvair-se para guimarães... era um poema carente de afetar-se a ramos gracilianos. assim alcançava o estatuto de raiz. cheirado, emitia brilhos tímidos – fosse um pirilampo. . Ondjaki. .
Portrait of the Marquise de Pompadour, François Boucher, 1756
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"Depois dessa crença central que, durante a minha leitura executava incessantes movimentos de dentro para fora, para a descoberta da verdade, vinham as emoções que me eram dadas pela ação em que tomava parte, porque aquelas tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que muitas vezes uma vida inteira. Eram os acontecimentos que surgiam no livro que estava a ler; é verdade que as personagens por eles afetadas não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que a alegria ou o infortúnio de uma personagem real nos fazem experimentar só acontecem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que no aparelho das nossas emoções, como a imagem é o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por muito profundamente que simpatizemos com ele, é em grande parte apreendido pelos nossos sentidos, o que quer dizer que permanece para nós opaco, que apresenta um peso morto que a nossa sensibilidade não pode levantar. Se é atingido por uma infelicidade, só numa pequena parte da noção total que dele temos é que podemos comover-nos com isso; muito mais ainda, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si é que ele mesmo poderá comover-se. O achado do romancista foi ter a idéia de substituir essas partes impenetráveis á alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que a nossa alma pode assimilar a si mesma. Que importa então que as ações, que as emoções desses seres de uma nova espécie, nos surjam como verdadeiras, visto que as tornamos nossas, visto que é em nós que acontecem, que mantém sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar? E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, toda a emoção é decuplicada, estado em que o seu livro nos vai perturbar à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos a dormir, e cuja lembrança irá durar mais tempo, então, eis que ele desencadeia em nós durante uma hora todas as felicidades e todas as infelicidades possíveis, algumas das quais levaríamos anos de vida a conhecer, e as mais intensas das quais nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que se produzem nos retira a percepção delas (assim, na vida, o nosso coração muda, e essa é a pior dor; mas só na leitura, em imaginação, a conhecemos: na realidade ele muda, como certos fenômenos da natureza se produzem, com suficiente lentidão para que, se pudermos detectar sucessivamente cada um dos seus estados diferentes, em contra-partida nos seja poupada a própria sensação de mudança."
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Marcel Proust, in: Em Busca do Tempo Perdido, No Caminho de Swann. . .
. . . A memória é uma ilha de edição - um qualquer passante diz, em um estilo nonchalant, e imediatamente apaga a tecla e também o sentido do que queria dizer. . Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser levado junto de roldão. Onde e como armazenar a cor de cada instante? Que traço reter da translúcida aurora? Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas? O perfume, acaso, daquela rosa desbotada? . A vida não é uma tela e jamais adquire o significado estrito que se deseja imprimir nela. Tampouco é uma estória em que cada minúcia encerra uma moral. Ela é recheada de locais de desova, presuntos, liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas, apagamentos de trechos, sumiços de originais, grupos de extermínios e fotogramas estourados. Que importa se as cinzas restam frias ou se ainda ardem quentes se não é selecionada urna alguma adequada, seja grega seja bárbara, para depositá-las? . Antes que o amanhã desabe aqui, ainda hoje será esquecido o que traz a marca d'água d'hoje. . Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto os cães de fila do tempo fazem um arquipélago de fiapos do terno da memória. Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos. Numerosas crateras ozonais. Os laços de família tornados lapsos. Oco e cárie e cava e prótese, assim o mundo vai parindo o defunto de sua sinopse. Sem nenhuma explosão final. . Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço. Um, sem nome e com vontade aguada, ergue este lema como uma barragem anti-entropia. . E os dias sucedem-se e é firmada a intenção de transmudar todo veneno e ferrugem em pedaço do paraíso. Ou vice-versa. Ao prazer do bel-prazer, como quem aperta um botão da mesa de uma ilha de edição e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo. . Corrigindo: ......................o humano fado. . . Waly Salomão, in: Carta Aberta a John Ashbery. .
. . . O curso de um dia nunca é constante. As horas experimentam dor e prazer. Na hora da cama só conhece vertigem. Mas quanto dura um dia? Tanto quanto o amor, dizem uns. Mas o amor vai embora cedo, Antes que o amanhã e a morte se manifestem. E quanto tempo dura o dia-a-dia? Uns dizem desde sempre, Mas começando quando? . No mesmo instante em que pela primeira vez Os olhos se arregalaram e não viram tudo — Num não tão tarde quando, pela última vez, O tempo durou não mais que um dia, Um dia de adivinhar: Por quanto tempo é permitido Chamar de tanto o que é tão pouco? . Laura Riding. .
"Copo Vazio",faixa do álbum "Gil Luminoso", de 2006
gravada originalmente por Chico Buarque, em 1974, para o álbum "Sinal Fechado, a composição é do próprio Gil
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Ontem assisti "O Homem das Multidões", de Cao Guimarães e Marcelo Gomes. Se é sempre constrangedor observar pessoas levantando e abandonando um filme no meio da projeção, é absolutamente lindo que ao final dela alguns tipos de alma permaneçam com seus olhos marejados e seus silêncios.
"Qualquer Coisa Que Brilhe", Adélia Prado programa Roda Viva, março de 2014
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Minha vida ganhou outros contornos quando aprendi a ler. Desde as primeiras palavras por meio das histórias em quadrinhos aos títulos exigidos na escola. Dos clássicos devorados no fim da adolescência aos livros de psicologia e filosofia. Todos, certamente, me disseram algo, contribuíram para um aprimoramento e enriquecimento não só cultural, mas sobretudo humano. No entanto, nenhum deles me ofereceu o entendimento, a beleza e a epifania que experimento através da POESIA. Não pretiro a prosa, absolutamente, mas é na poesia que eu encontro sentido e alivio para a rudeza do mundo, e o assombramento de viver.
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São eternos esta oficina mecânica,
estes carros, a luz branca do sol.
Neste momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, tudo é muito eterno,
só choramos por sermos condizentes.
Necessito pouco de tudo,
já é plena a vida,
tanto mais que descubro:
Deus espera de mim o pior de mim,
num cálice de ouro o chorume do lixo
que sempre trouxe às costas
desde que abri meus olhos,
bebi meu primeiro leite
no peito envergonhado de minha mãe.
Ofereço cantando, estou nua,
os braços erguidos de contentamento.
Sou deste lugar,
com tesoura cega cortei aqui o meu cabelo,
sedenta de ouro esburaquei o chão
atrás do que brilhasse.
Pois o encontro agora escuro e fosco
no dia radioso é único e não cintila.
Veio de vós. A vida. Do opaco. Do profundo de Vós.
... I Went to the Garden of Love I, Evelyn Williams,2000
. . . Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima — eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço e o coração é uma semente inventada em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão como se toda a casa ardesse pousada na noite. — E então não sei o que dizer junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas que às vezes se despenham no meio do tempo — não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço — e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer coisa extraordinária. Porque não sei como dizer-te sem milagres que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor,
que te procuram. . . Herberto Helder. Tríptico II. .
"Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e ainda assim, estava no mesmo lugar! Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas..."
. . Esta vibração verde é uma planta envolta em ar este verde é o ar que perfuma este perfume é a linguagem da planta Eu não sou nada se não sou a planta o ar a fragrância e nada é nada se não se vê que nada é nada aqui agora Um menino brinca no gramado escolhe uma árvore outra outra vai de uma árvore até o meio do jardim corre até outra árvore até outra volta ao centro Um pássaro canta e lá de fora árvores menino e pássaro não são isso Lá de fora é de dentro para quem olha como quem luta como quem passa através de nenhum obstáculo A prova mais dura o salto que consiste em ficar imóvel à margem da plenitude sem margens que (a plenitude) não existe como imagem nem suporte E então o menino chega até a árvore e se entende que não havia pássaro cantando que o canto era esse nome que recebe esse ato para quem está olhando como quem ama como quem vive como quem sabe que as árvores a verde vibração que é a planta envolta em ar o salvam de ser aquilo que todo o resto insiste em dar-lhe a partir de sapatos mulheres espetáculos dias O que olha é agora o olhado mas o menino escolhe novamente uma árvore corre e retorna e outra vez corre e volta O olhado fica para lá e o que olhava volta a ser aquele que olha Até que algum dia quem sabe Até que não haja retorno . Julio Cortázar. .