domingo, 19 de agosto de 2012

"e eu já não reconhecia mais minhas próprias margens..."

Anna Akhmátova, Nathan Altman, 1914
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Eu, como um rio,
fui devastada por estes duros tempos.
Deram-me uma vida interina. E ela pôs-se a fluir
num curso diferente, passando pela minha outra vida,
e eu já não reconhecia mais minhas próprias margens.
Oh, quantos espetáculos perdi,
quantas vezes o pano ergueu-se
e caiu sem mim. Quantos de meus amigos
nunca encontrei uma só vez em toda a minha vida,
e quantas paisagens de cidades
poderiam ter-me arrancado lágrimas dos olhos;
mas só conheço uma cidade neste mundo
embora nela fosse capaz de achar meu caminho até dormindo;
e quantos poemas nunca cheguei a escrever,
e seus refrões misteriosos pairam à minha volta
e, talvez, de algum jeito, acabem por
me estrangular...
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Estão claros, para mim, o começo e o fim,
e a vida depois do fim, e mais algumas coisas
de que não tenho de me lembrar por enquanto.
Uma outra mulher ocupou
o lugar especialmente reservado para mim
e usa o meu nome,
deixando para mim só o apelido, com o qual
fiz, provavelmente, tudo que havia para se feito.
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Não me deitarei, ai de mim, em meu próprio túmulo.
Mas, às vezes, o vento brincalhão da primavera,
ou certas combinações de palavras em um livro,
ou o sorriso de alguém suscita em mim,
de repente, essa vida que nunca aconteceu.
Neste ano, houve tais e tais coisas,
naquele ano, aquelas outras: viajar, ver, pensar
e lembrar, e entrar em um novo amor
como dentro de um espelho, com a leve consciência
da traição e de que, ontem, ainda não estava ali
aquela ruga.
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Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
Aí sim, aprenderia finalmente o que é a inveja.
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Anna Akhmátova.
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