"Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a prudência. ‘E se de repente eu pudesse?’, indagou-se ele. E então não conseguiu se enganar: o que quer que conseguisse escrever seria apenas por não conseguir escrever ‘a outra coisa’. Mesmo dentro do poder, o que dissesse seria apenas por impossibilidade de transmitir uma outra coisa. A proibição era muito mais funda…, surpreendeu-se Martim.
Como se vê, aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre sensatamente evitara. E a escolha tornou-se ainda mais funda: ou ficar com a zona sagrada intacta e viver dela – ou traí-la pelo que ele certamente terminaria conseguindo e que seria apenas isso: o alcançável. Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das próprias mãos – mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras... Seria o côncavo das próprias mãos. Preferia então o silêncio intacto. Pois o que se bebe é pouco; e do que se desiste, se vive."
Clarice Lispector, in: A Maçã no Escuro.