domingo, 26 de outubro de 2014

"Venham embora, palavras, para onde o sentido não se engrosse com a substância impaciente da voz..."

Dante in exile, John Elliott, 1904 
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Eu também não gosto dela: há coisas bem mais importantes que
[toda esta frioleira.
Lendo-a, porém, com um profundo desprezo por ela, a gente descobre
nela, de qualquer modo, um lugar para o que é genuíno.
Mãos que podem reter, olhos
que podem se ampliar, cabelos que podem se eriçar
se for preciso, essas coisas são importantes, não porque

uma altissonante interpretação lhes possa ser dada mas porque são
utéis. Quando elas começam a derivar a ponto de se tornarem ininteligíveis,
a mesma acusação pode ser feita a nós outros,
que não admiramos o que
não podemos entender: o morcego
pendente de cabeça para baixo ou à procura de algo para

comer, elefantes se empurrando, um cavalo selvagem rolando, um lobo
[incansável sob
uma árvore, o crítico imóvel com arrepios na pele como um cavalo que
[sente uma pulga, o torcedor de baseball,
o técnico em estatística...
E nem vale o argumento
para discriminar entre "documentos profissionais e

livros escolares";  todos esses fenômenos são importantes. É preciso fazer
[uma distinção, 
porém: quando arrastada à fama por meios-poetas, o resultado
[não é poesia,
a menos que os poetas entre nós possam ser
"interprétes rigorosos da
imaginação" - acima 
de insolência e trivialidades e que possam apresentar

para inspeção, jardins imaginários contendo rãs verdadeiras; então
[nós a teremos
encontrado. Neste ínterim, se você exige para uma mão
o rude material da poesia em 
toda a sua rudeza e 
para o que está na outra mão
legitimidade, então você se interessa por poesia.
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Marianne Moore.
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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Nutri a esperança de inventar um verbo poético que seria um dia acessível a todos os sentidos..."

Manuscript self portrait of Arthur Rimbaud, Sergio Albiac, s.d.
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"... arthur, arthur, estamos em aden, abissínia. fodendo &
fumando. nos beijamos. mas é mais que isso. blues.
charco azulado. mancha à tona da lagoa. percepções
ampliadas, alma vita. baia cristalina. explosão de bolas
de vidro coloridas. rasgadura de tecidos de tenda árabe.
se abrindo, aberta como uma caverna, aberta ao máximo.
rendição total."
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Patti Smith, trecho do poema "Sonho com Rimbaud".
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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

[ Intimidar o poema a ser raiz ]

Sonho Poético, Martha Barros, 2009
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era um poema lateral aos sentidos.
ganhava formato ébrio
ao nem ser escrito.
longe dos pensamentos
imitava uma pedra 
[aí as palavras drummondeavam].
longe das lógicas
– com tendência vagabunda – 
o poema driblava lados avessos 
de noites
e animais
[aqui as sílabas manoelizam, barrentas].
mas uma estrela nunca brilha
tão solitária;
encarece-se também de luuandinar, 
miar à couto, 
esvair-se para guimarães...
era um poema carente de afetar-se
a ramos gracilianos.
assim alcançava
o estatuto
de raiz.
cheirado, emitia brilhos tímidos
– fosse um pirilampo.
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Ondjaki.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

 Portrait of the Marquise de Pompadour, François Boucher, 1756
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"Depois dessa crença central que, durante a minha leitura executava incessantes movimentos de dentro para fora, para a descoberta da verdade, vinham as emoções que me eram dadas pela ação em que tomava parte, porque aquelas tardes eram  mais cheias de acontecimentos dramáticos do que muitas vezes uma vida inteira. Eram os acontecimentos que surgiam no livro que estava a ler; é verdade que as personagens por eles afetadas não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que a alegria ou o infortúnio de uma personagem real nos fazem experimentar só acontecem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que no aparelho das nossas emoções, como a imagem é o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por muito profundamente que simpatizemos com ele, é em grande parte apreendido pelos nossos sentidos, o que quer dizer que permanece para nós opaco, que apresenta um peso morto que a nossa sensibilidade não pode levantar. Se é atingido por uma infelicidade, só numa pequena parte da noção total que dele temos é que podemos comover-nos com isso; muito mais ainda, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si é que ele mesmo poderá comover-se. O achado do romancista foi ter a idéia de substituir essas partes impenetráveis á alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que a nossa alma pode assimilar a si mesma. Que importa então que as ações, que as emoções desses seres de uma nova espécie, nos surjam como verdadeiras, visto que as tornamos nossas, visto que é em nós que acontecem, que mantém sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar? E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, toda a emoção é decuplicada, estado em que o seu livro nos vai perturbar à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos a dormir, e cuja lembrança irá durar mais tempo, então, eis que ele desencadeia em nós durante uma hora todas as felicidades e todas as infelicidades possíveis, algumas das quais levaríamos anos de vida a conhecer, e as mais intensas das quais nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que se produzem nos retira a percepção delas (assim, na vida, o nosso coração muda, e essa é a pior dor; mas só na leitura, em imaginação, a conhecemos: na realidade ele muda, como certos fenômenos da natureza se produzem, com suficiente lentidão para que, se pudermos detectar sucessivamente cada um dos seus estados diferentes, em contra-partida nos seja poupada a própria sensação de mudança."
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Marcel Proust, in: Em Busca do Tempo Perdido,
 No Caminho de Swann.
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