segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

Portrait of Charles Baudelaire, Gustave Courbet, 1848
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A realidade bifurcou-se, na coisa real e em sua versão alternativa, duas vezes. Temos o evento e sua imagem. E temos o evento e sua projeção. Mas como para as pessoas os eventos reais muitas vezes não parecem ter mais realidade do que as imagens, nossas reações a eventos do presente recorrem, para confirmá-los, a esboços mentais, acompanhados de cálculos apropriados, do evento em sua forma projetada, final.
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A consciência do futuro é o hábito mental — bem como a corrupção intelectual  por excelência desse século, tal como a consciência histórica, conforme observou Nietzsche, transformou o pensamento do século XIX. A capacidade de avaliar o modo pela qual as coisas evoluirão no futuro é o subproduto inevitável de uma compreensão mais sofisticada (quantificável, testável) dos processos, tanto sociais quanto científicos. A capacidade de projetar eventos futuros com certo grau de precisão ampliou a própria definição de poder, por ser ampla fonte de instruções a respeito da maneira de se lidar com o presente. Mas, na verdade, a capacidade de antever o futuro, antes associada à noção de progresso linear, transformou-se  com a aquisição de um volume de conhecimentos maior do que se poderia imaginar  numa visão da catástrofe.
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Susan Sontag, in: Doença como Metáfora / Aids e suas Metáforas.
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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"A vida es acto que conoce y cada acto, introducción al otro no saber. La inteligencia y el instinto encienden fuegos en la noche. Pero es del infinito que estamos exiliados..."

Juan Gelman, 03/05/1930 - 14/01/2014
© foto de Daniel Mordzinski, s.d.
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hoje chove muito, muito,
e parece que estão lavando o mundo
meu vizinho do lado contempla a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher que vive com ele
e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele
e parece sua sombra
meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta se entra em muitos lugares
no trabalho, no quartel, no cárcere,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher/nem na alma
quer dizer/nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje/que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e somente a alma sabe onde os dois se encontram
e quando/e como
mas o que pode a alma explicar?
por isso meu vizinho tem tormentas na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que há entre duas rosas
ou como eu/que escrevo palavras para voltar
ao meu vizinho que contempla a chuva
à chuva
ao meu coração desterrado.
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Juan Gelman, do livro Isso, Ed. UNB, 2004.
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sábado, 11 de janeiro de 2014

[ Ser ] [ Parecer ]

Mime, Marcel Marceau, © foto de Jack Mitchell, 1973
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Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida
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Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.
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Mia Couto, in: Raiz de Orvalho e Outros Poemas.
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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

"Porquanto, como conhecer as coisas senão sendo-as?"

Bataille de Fleurs, Marc Chagall, 1967
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Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo de manhã!
Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar com as crianças.
Olhar as flores, ver os bondes passarem cheios de gente,
E, encostado no rosto de casas, sorrir...

Saber que o céu está lá em cima.
Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão perfeitas.
Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela igreja.
Ver pessoas rindo. Ver os namorados cheios de ilusões.

Sair andando à toa entre plantas e os animais.
Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas mais apagadas.
Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.

Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas calçadas, nas quitandas.
Ver gente conversando na esquina, falando de coisas ruidosas.
Ver gente discutindo comércio, futebol e contando anedotas.
Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças, enchendo as travessas.

Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que eles estão longe e ter saudades deles...

Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.
Lembrar das músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente viu.

Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto...

Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.
Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos livros lidos.

Pensar nas horas vagas, nas horas passadas lendo as poesias de Anto.
Lembrar dos poetas e imaginar a vida deles muito triste.
Imaginar a cara deles como de anjos. Pensar em Rimbaud,
Na sua fuga, na sua adolescência, nos seus cabelos cor de ouro.

Não ter ideia de voltar para casa. Lembrar que a gente,
afinal de contas,
Está vivendo muito bem e é uma criatura até feliz. Ficar admirado.
Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom de alívio,
Olhar com ternura a criação e ver-se pago de tudo.

Descobrir que, no final das contas, não se possui nenhuma queixa
E que se está sem nenhuma tristeza para dizer no momento.
Lembrar que não sente fome e que os olhos estão perfeitos.
Para falar a verdade, sentir-se quite com a vida.

(...) Como é bom a gente ter tido infância para poder lembrar-se dela
E trazer uma saudade muito esquisita escondida no coração.
Como é bom a gente ter deixado a pequena terra em que nasceu
E ter fugido para uma cidade maior, para conhecer outras vidas.
Como é bom chegar a este ponto e olhar em torno
E se sentir maior e mais orgulhoso porque já conhece outras vidas...

Como é bom lembrar-se da viagem, dos primeiros dias na cidade,
Da primeira vez que olhou o mar, da impressão de atordoamento.
Como é bom ter vindo de longe, estar agora caminhando
Pensando e respirando no meio de pessoas desconhecidas
Como é bom achar o mundo esquisito por isso, muito esquisito mesmo
E depois sorrir levemente pare ele com os seus mistérios...

Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso, exclamar.
Como tudo é tão belo e tão cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.

Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve.
A beleza que a gente vê saindo das rosas, a dor saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.

Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver no tempo.
Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar os bigodes,
Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que passara
num bar, que ouvira uma mazurca,
E agora estava ali, muito perdidamente lembrando coisas
bobas de sua pequena vida.
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Manoel de Barros.
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