sábado, 24 de maio de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

 Philosopher Reading, Rembrandt, 1631
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"Acho que deveria começar a fazer alguma coisa, agora que estou aprendendo a ver. Tenho 28 anos e não aconteceu praticamente nada. Recapitulemos: escrevi um estudo, ruim, sobre Carpaccio, um drama intitulado Casamento e que quer mostrar algo falso com recursos ambíguos, e versos. Ah, mas versos escritos cedo não são grande coisa! Deveríamos esperar para escrever, e juntar senso e doçura por uma vida inteira, longa, se possível, e então, bem no fim, talvez pudéssemos escrever dez linhas que fossem boas. Pois versos não são, como pensam as pessoas, sentimentos (deles temos o bastante na juventude) — são experiências. Por causa de um único verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como os pássaros voam e saber com que gestos  as pequenas flores se abrem pela manhã. É preciso ser capaz de recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que vemos se aproximar por longo tempo... doenças de infância  que começam tão estranhamente, com tantas metamorfoses profundas e difíceis, dias em quartos quietos e reservados, e manhãs junto ao mar, sobretudo o mar, os mares, as noites de viagem que passavam ruidosamente e voavam com todas as estrelas — e ainda não é o bastante se precisamos pensar em tudo isso. É preciso ter lembrança de muitas noites de amor, todas diferentes entre si... Mas ainda não basta ter recordações. É preciso ser capaz de esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que retornem. Pois elas ainda não são as recordações mesmas. Apenas quando elas se tornam sangue em nós, olhar e gesto, anônimas e indistinguíveis de nós mesmos, só então poderá acontecer que numa hora muito rara se levante e saia do meio delas a primeira palavra de um verso..."
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Rainer Maria Rilke, in: Os Cadernos de Malte Laurids Brigge.
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