sábado, 27 de fevereiro de 2016

"E aí adormecia dum sono sem remorsos e sem melancolia..."

Master Bedroom, Andrew Wyeth, 1965
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Para Madonna, que agora chamamos e já não está.

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,

nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.

Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.

Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.

Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."
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Manuel António Pina.
Poema "O Nome do Cão", do livro Todas as Palavras: poesia reunida. Ed. Assírio & Alvim, 2012.
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Retrato do artista enquanto sujeito: Mário Cesariny

Mário Cesariny de Vasconcelos, poeta e pintor português (1923-2006)
© foto de Nuno Calvet, s.d.
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(...) 
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não
dia sim dia não
devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos
técnicas mais sérias prestígios maiores
devo saber que és forte e amplo transparente e colher-te 
murmúrio flébil aureolado
que eu arranco da luz que encharca o mundo
dia sim dia não dia sim dia não 
(...)
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Mário Cesariny, 
Trecho do poema Ars Magna, do livro Manual de Prestidigitação.

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