quarta-feira, 26 de setembro de 2012

"O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto, as coisas sabem as coisas..."

Play of Lights, Louis Fleckentein, 1912
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Personagem de seus personagens, autora e leitora de seu próprio livro, que nele e através dele se recapitula, Clarice Lispector, ortônima no meio de seus heterônimos, finalmente se inscreve no fecho da obra, escrevendo o antecipado epitáfio, por onde começa e acaba o texto de Um Sopro de Vida:


Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste começo. Quer dizer que o fim, que não deve ser lido antes, se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter lido o livro, cortei muito mais que a metade, só deixei o que me provoca e inspira para a vida: estrela acesa ao entardecer. (...) No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim uma aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malgrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.
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Benedito Nunes, in: O Drama da Linguagem, uma leitura de Clarice Lispector.
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domingo, 23 de setembro de 2012

"... prefiro a vigília antes que ter repouso."

Three medlars with a butterfly, Adriaen Coorte, 1705
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É preciso fé para cortar as unhas,
cuidar dos dentes como bens de empréstimo.
O cobrador invisível bate à porta.
Não durmo, ele também não.
Deve ser amor o que nos deixa unidos
neste avesso de mística.
Por orgulho de pobre
dou por bastante a pouca claridade
e prefiro a vigília antes que ter repouso.

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Adélia Prado, in: A Duração do Dia.

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sábado, 15 de setembro de 2012

(( Amor fati ))


Liebestod, aria final da Ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner
Jessye Norman e Filarmônica de Viena, com a regência de Herbert von Karajan
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Eis o que consegui:
tudo estava partido e então
juntei tudo em ti

toda minha fortuna
quase nada tudo muitas coisas
numa

só:
eu quis correr o risco antes de virar
pó:

juntar tudo em ti:
toda joia todo pen drive todo cisco
tudo o que ganhei tudo o que perdi

meu corpo minha cabeça meu livro meu disco
meu pânico meu tônico
meu endereço
eletrônico

meu número meu nome meu endereço
físico
meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo
o mar o sol a noite a ilha
o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente
meio aqui
e meio ausente

meu continente meu conteúdo
e além de todo mundo
também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança
algo que fica
algo que dança

o que sei o que ignoro
o que rio
e o que choro

toda paixão
todo meu ver
todo meu não

tudo estava perdido e aí
juntei tudo
em ti
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Antonio Cícero,
poema do livro Porventura, Ed. Record, 2012.
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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

domingo, 2 de setembro de 2012

"Vou-me embora pra Pasárgada..."


"O Poeta do Castelo", Manuel Bandeira em documentário de 1959,
direção de João Pedro de Andrade

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Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
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Manuel Bandeira.
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sábado, 1 de setembro de 2012

"Não se pode soldar o abismo com ar."

 Black on Maroon, Mark Rothko, 1959
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Para encher um Vazio
Ponha de volta Aquilo que o causou.
Baldado cobri-lo
Com outra coisa — sua boca vai
mais se escancarar —
Não se pode soldar o Abismo
Com ar.
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Emily Dickinson.
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