terça-feira, 24 de março de 2020

"As paisagens continuam a existir..."

Light and Colour (Goethe’s Theory) - The Morning after the Deluge - Moses Writing the Book of Genesis, William Turner, 1843.
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Queria acreditar em algo além,
Além da morte que a desfez.
Queria poder dizer a força
Com que outrora desejamos,
Nós, já submersos,
Poder mais uma vez juntos
Caminhar livremente sob o sol.
.⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Primo Levi.
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quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Retrato do artista enquanto sujeito: João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata brasileiro, completando 100 anos hoje.
© foto de Orlando Brito, 1974.
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Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

João Cabral de Melo Neto.
Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas).

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Música para curar a alma: Nathalie Stutzmann

Erbarme dich, The St. Matthew Passion, BWV 244, Sebastian Bach, 1727.


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É tão difícil amar
neste mundo imperfeito
é difícil dizer alguma coisa
que não seja um equívoco
é difícil encontrar
o peso correto
das coisas
saber nosso próprio tamanho
olhar alguns bichos nos olhos
pensar com doçura
aproveitar adequadamente a luz
desejar para o pássaro um destino de pássaro,
para a seda, um destino de seda.

Ana Martins Marques.
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sábado, 17 de agosto de 2019

"Só a febre e a poesia provocam visões. Só o amor e a memória..."

On the Horizon the Angel of Certainty, and in the Dark Sky, an Interrogating Look, Odilon Redon, 1882.
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No caminho dos cães minha alma encontrou
meu coração. Destroçado, mas vivo,
sujo, malvestido e cheio de amor.
No caminho dos cães, lá onde ninguém quer ir.
Um caminho que só percorrem os poetas
quando não lhes resta nada a fazer.
Mas eu ainda tinha tantas coisas por fazer!
e no entanto ali estava: me fazendo matar
pelas formigas vermelhas e também
pelas formigas negras, percorrendo as aldeias
vazias: o espanto que se elevava
até tocar as estrelas.
Um chileno educado no México pode suportar tudo,
pensava, mas não era verdade.
Às noites meu coração chorava. O rio do ser, diziam
uns lábios febris que logo descobri eram os meus,
o rio do ser, o rio do ser, o êxtase
que se curva na ribeira dessas aldeias abandonadas.
Sumulistas e teólogos, adivinhos
e assaltantes de estrada emergiram
como realidade aquáticas no meio de uma realidade
metálica.
Só a febre e a poesia provocam visões.
Só o amor e a memória. 
Não estes caminhos nem estas planuras.
Não estes labirintos.
Até que por fim minha alma encontrou meu coração.
Estava doente, sim, mas estava vivo.
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Roberto Bolaño.

sábado, 6 de julho de 2019

Canta a eternidade de mansinho, João.

João Gilberto (10/06/1931 - 06/07/2019)
© foto de Tom Copi, São Francisco, 1976
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A vida cotidiana é um instante
de outro instante que é a vida total do homem.
mas por sua vez quantos instantes não há de ter
esse instante do instante maior
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cada folha verde se move ao sol
como se perdurar fosse seu inefável destino
cada pardal avança a saltos imprevistos
como burlando-se do tempo e do espaço
cada homem se abraça a alguma mulher
como se assim agarrasse a eternidade
.
na realidade todas estas pertinácias
são modestos exorcismos contra a morte
batalhas perdidas com ritmo de vitória
réus obstinados que se recusam
a admitir a injusta punição
viventes que se fazem de distraídos
.
a vida cotidiana é também uma soma de instantes
algo assim como partículas de pó
que continuarão caindo em um abismo
e contudo cada instante
ou seja cada partícula de pó
é também um copioso universo
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com crepúsculos e catedrais e campos de cultivo
e multidões e cópulas e desembarques
e bêbados e mártires e colinas
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e vale pena qualquer sacrifício
para que esse abrir e fechar de olhos
abarque por fim o instante universo
com um olhar que não se envergonhe 
de sua reveladora
efêmera 
insubstituível
luz
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Mario Benedetti.
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domingo, 9 de junho de 2019

Música para curar a alma: Madonna

Dark Ballet, faixa do álbum "Madame X", Live Nation, Interscope Records e Maverick, a ser lançado em 14 de junho de 2019.
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Madonna, mais uma vez, expandindo o conceito de cultura pop para algo muito maior. Ao evocar uma Joana D'arc personificada no corpo de um homem negro, gay, transgênero não-binário e soropositivo (o rapper, poeta e ativista americano Mykki Blanco), ela toca em questões contemporâneas e absolutamente pertinentes. Julgar e sumariamente condenar continua sendo uma prática, sobretudo se você pertence a uma minoria. Nenhum outro artista pop soa tão competente ao criar pequenas narrativas audiovisuais que se sobrepõem ao mero intuito de entreter. Música, cinema, fotografia, teatro, artes plásticas, moda, religião e comportamento — temas recorrentes no universo da artista — estão  presentes em "Dark Ballet" e habilmente condensados em camadas e mais camadas de simbolismo e poesia.  
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terça-feira, 9 de abril de 2019

"Diante da dor dos outros..."

Beth Gibbons, Sinfonia No.3, Mov. III: Lento - Cantabile-Semplice, Henryk Górecki
Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional Polonesa, regência: Krzysztof Penderecki, 2019
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Homens atiram 80 vezes em um carro de família assumindo o risco de matar porque o extermínio de símbolos de insignificância social, racial, sexual, econômica e ideológica tornou-se coisa banal. E você se incomoda ou mesmo chora se ainda lhe resta algum resquício de consciência. E desacredita e pragueja e se enfraquece. Tudo é muito vil e feio, vil e feio. Então, esses mesmos homens — os que ainda resistem a brutalidade, a arbitrariedade e ao adoecimento psíquico — enxergam a beleza contida no mundo, se inspiram e se apiedam dele, de sua condição ainda primeva e celestial, 'sempre' a resistir à nossa virulência opressiva e devastadora; e criam poesia. Compõem músicas, tocam instrumentos, esculpem, pintam, cultivam flores e frutos, a manutenção dos afetos... e cantam. Cantam ainda que seja um lamento.
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sexta-feira, 29 de março de 2019

"Je me souviens pendant que je vie..."

Agnès Varda (30/05/1928 - 29/03/2019)
© Micheline Pelletier: on the set of Vagabond/Sans Toit ni Loi, 1985.
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Quando o não-ser fica em suspense
abre-se a vida esse parêntese
com um gemido universal de fome
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somos famintos desde o vamos

e o seremos até o vamo-nos
depois de muito descobrir
e brevemente amar e acostumar-nos
à falida eternidade
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a vida se encerra em vida

a vida esse parêntese
também se fecha..........incorre
em um gemido universal
o último
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e então somente então

o não-se segue para sempre.
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Mario Benedetti. 
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domingo, 24 de março de 2019

Retrato do artista enquanto sujeito: Lawrence Ferlinghetti

Lawrence Ferlinghetti, poeta, editor, pintor e ativista americano, completando 100 anos hoje
© documentário "Ferlinghetti: A Rebirth of Wonder", dir. Christopher Felver, 2009.
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Infinda a esplêndida vida do mundo
Infindos seus lindos seus vivos seus vividos
seus lindos seres vivos
ouvindo e vendo pensando e sentindo
dançando e rindo soluçando e ganindo
por tardes infindas infindas noites
de amor e êxtase júbilo e agonia
bebendo e queimando falando e cantando
em infindas Amsterdãs da existência
com infindos diálogos animados
sobre infindas xícaras de café
em clubes literários nas manhãs de chuva
Infindos filmes das ruas passando
em carros e trens de desejo
nas infindas trilhas da luz
E infindos cabelos longos dançando
ao som do punk rock e da discô
através de Vias Lácteas meia-noites
até os Paradisos da madrugada
falando e fumando e pensando
do tudo infindo da noite
no alvo leite da noite a luz da noite
Ah sim oh sim o infindo viver e amar

odiar e amar beijar e matar
Infinda a tique-taque respira tritura
máquina-carne da vida
gira-girando através do tempo
Infinda vida e infinda morte
infindo ar e infindo respirar
Infindos mundos de dias sem fim
nas capitais de outono
avenidas de folhas em chamas
Infindos sonhos e sonos se desenrolando
as camisas-de-força da angústia
os labirintos do pensamento
os 'labirictus' de amor
os caracóis do desejo e da saudade
miríades de infindos jogos do inominável
Infindos os céus em chamas
infindo universo se desenrolando
Mundo sobre uma pira de cogumelos 
Infindo o fogo que resfolega em nós
comedores-de-fogo dançando nas praças
engolindo o ar queimando gasolina
Enfrente o bate coração da vida em chamas
seus bateres e pulsares e desapareceres 
Infindos os campos abertos dos sentidos
o cheiro de porra e amor

o miau e miau dos gatos no cio
o cheiro de quero no meio
Fim nenhum ao som que faz amor
ao som das camas estralando
ao som dos amantes amando e amando isso
o som passando pelas paredes de noite
Fim nenhum a seus ahs de êxtase (...)

Infindo o som desta vida do homem na terra
seus infindos programas de rádio e transmissões de tv
jornais escorrendo dos infindos rolos
das rotativas
o fluir das suas palavras e imagens
em infindas fitas de máquinas de escrever
escritas automáticas e garranchos
infindos poèmes dictés pelo desconhecido
Infindos os telefonemas de leste a oeste
a espera dos amantes nas plataformas de trem
o canto das aves nas colinas e telhados
o crau crau dos corvos no céu
as miríades de cricrilares de grilos
os mares fluentes  as águas chorando
subindo e descendo em distantes moinhos
murmúrio das mares
nos Idos do outono
beijo e sal da criação (...)

Infindo o mastigar
nos sanduíches de carne da luxúria
os bifes suculentos do amor
infindas fantasias e orgasmos
ritos de fertilidade e ritos de passagem (...)

Infindas as variações íntimas 
do totalmente íntimo
os fogos da juventude as brasas da idade
a raiva do poeta nascido de novo
Sem fim sem fim toda e qualquer criatura
na dança muda das moléculas
Tudo transmuda Tudo muda
e tudo brada mais e mais
Infinda a esperança por Deus e Godot (...)

Pois não há fim para as escolhas da esperança 
ainda por escolher (...)
E não há fim
para as portas da percepção ainda por abrir
e os jatos de luz
na estratosfera do espírito do homem 
no espaço sideral dentro de nós
na Amsterdã  do yin & yang
Rubayats sem fim e infindas bem-aventuranças
infindos shangrilas infindos nirvanas
sutras e mantras
satoris e sansaras
Bodhiramas e Boddhisatvas
karmas e karmapas!
Infindas danças de Shiva cantando
entre as brumas do útero do êxtase!
Brilho! Transcendente!
na cristal noite do tempo

no infindo silêncio da alma
no longo alto conto do homem
em seu infindo som e fúria
significando tudo
com suas infindas alucinações
ereções e exibições
fascismo e machismo
circos da alma perdida 
rodas-gigantes da imaginação
coney island dos sem-mente
infindo poema ditado
pela voz avulsa
do inconsciente coletivo
brilhe borrando sobre as trilhas do tempo!

Nos últimos dias de Alexandria
Os dias antes de Waterloo
Tudo continua dançando
Tem um som de festa hoje à noite.
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Trechos do poema Vida Infinda.
Amsterdã, julho de 1980.
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domingo, 20 de janeiro de 2019

"...a alma dele é preparada, é bastante profissional, somente o corpo é sempre amador..."

Underwater Diver, Louis Boutan, 1899
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O homem não tem tempo
para tudo na vida.
Ele não tem uma época
para cada um de seus desejos.
O Eclesiastes não está certo.

O homem precisa odiar

e amar ao mesmo tempo,
com os mesmos olhos chorar
e com os mesmos olhos rir,
com a mesma mão atirar pedras
e com a mesma mão recolhê-las,
fazer amor na guerra e guerra no amor.

Odiar e perdoar, lembrar e esquecer,
organizar e confundir, comer e digerir
o que a história
faz ao longo de muitos e muios anos.

O homem na vida não tem tempo. 
Quando ele perde ele procura,
quando ele acha ele esquece,
quando ele esquece ele ama
e quando ele ama começa a esquecer.

a alma dele é preparada 
é bastante profissional,
somente o corpo é sempre
amador. Tenta e erra,
não aprende, confunde-se 
bêbado, cego nos prazeres e nas dores.

A morte dos figos é no outono,
encarquilhados, cheios de si e doces,
as folhas secam sobre a terra,
os galhos nus já apontam
o lugar onde há tempo para tudo.
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O Homem não tem tempo, 
Yehuda Amichai.
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Do livro Terra e Paz: Antologia Poética, 
Ed. Bazar do Tempo, 2018.
Tradução: Moacir Amâncio.
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domingo, 9 de dezembro de 2018

"Ante este ímpeto de sons e de silêncio, ante tais gritos de furiosa paz, ante um furor tamanho de existir eterno..."

Maria, screenshot do filme Maria by Callas: in her own words
dir. Tom Volf, 2018
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Como se modulando neste espaço-tempo
que se desenha espaço em mero som contínuo
de um tempo trespassado,
a fina imarcessível
dor 
é timbre e andamento,
e proporção de altura
a desdobrar-se na serena angústia
de um nada preenchido.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Intensamente.
Quietação.
Vácuo.
Tudo. 
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Canta o impossível.
Que voz humana
sustentaria
esta pressa alegre
ou a tensão suspensa
do lento sonho?
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Jorge de Sena.
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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

"And so, like this flower, I persist — for what there may be in it..."

 Gelsomina, interpretada por Giulietta Masina, em A Estrada da Vida,  
dir. Federico Fellini, 1954
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Há dias que atravessamos deitados numa cama demasiado ampla para um só sonhador, completamente despertos, de rosto confundido entre cobertores, de corpo engessado, de futuro fraturado. Dói-nos tudo, tudo e mais alguma coisa, mas se nos perguntasse, responderíamos "nada em particular". E é verdade. 
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Bénédicte Houart.
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terça-feira, 2 de outubro de 2018

"Ainda assim, sei que preciso de alguma alegria imperecível..."

Affresco di Villa di Livia, Prima Porta, Museo Nazionale Romano, 30-20 a.C.  
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III
Quem sabe nosso sangue ainda virá
A ser do paraíso? Será a terra
O único paraíso possível?
O céu ainda será nosso aliado,
Na dor e no cansaço, quase igual
Em glória ao próprio amor imorredouro,
Não mais um muro indiferente e azul.
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VI
Não haverá morte no paraíso?
Não cairá a fruta madura? Os galhos
Hão de ficar para sempre carregados
Naquele céu perfeito e imutável,
E ao mesmo tempo semelhante ao mundo
Mortal, com rios que buscam sempre mares
Que nunca hão de tocar com lábios mudos?
De que servem as maças nessas margens?
Por que adoçar com ameixa aquelas praias?
Que triste, lá brilharem nossas cores,
Tecer-se a seda de nossas manhãs,
Soarem nossos violões insípidos!
A morte é a mãe de todo o belo, mística,
E no seu seio cálido sonhamos
A mãe terrena, insone, a nossa espera.
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Wallace Stevens, 
trechos do poema "Manhã de Domingo"
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quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Música para curar a alma: Lauryn Hill

Superstar, faixa do álbum "The Miseducation of Lauryn Hill", Columbia Records, 1998. 
o primeiro álbum solo e único de estúdio completou 20 anos de lançamento em agosto. 
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sábado, 14 de julho de 2018

terça-feira, 15 de maio de 2018

Música para curar a alma: Montserrat Figueras e Maria Cristina Kiehr


Troisième Leçon de Ténèbres à 2 Voix, Francois Couperin, c. 1714
Condutor e solista, Jordi Savall
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"... e para além dessa certeza que outro ritmo dá àquele de que as palavras têm sentido: lá onde ouvir e não-ouvir se igualam..."
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Jorge de Sena, in: Arte de Música.
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sexta-feira, 27 de abril de 2018

"Que alheias cicatrizes?"

The Play of Life (Self-portrait), Pierre Dubreuil, circa 1930
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Cheguei demasiadamente tarde
e já todos se tinham ido embora,
identidade, sujidade, eternidade.
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Comeram o meu corpo e
beberam o meu sangue; e pelo caminho, a minha biblioteca;
e escreveram a minha Obra Completa;
sobre, desapossado, eu.

Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (talvez o coração) desacertaria.

Pôr-me aos tiros na cara como Chamfort?
Dar e aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Pormodernizar-me? Experienciar-me?

Com que palavras e sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.

Cheira excessivamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.

Que dia? Que olhar?
(Beckett, Dias felizes)
Que feridas? Que estandar-
te? Que alheias cicatrizes?

Estou diante de uma porta (de uma forma)
com o como dizer? coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.
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Manuel António Pina.
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domingo, 28 de janeiro de 2018

"...Como uma criatura humana, estou cansado, muito cansado..."

Twirling Wires, Roger Ballen, 2001
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Nasci em 1924. Se eu fosse um violino da minha idade
não seria dos melhores. Como vinho seria um cinco estrelas
ou vinagre. Como cachorro estaria morto. Como um livro
estaria me tornando caro, ou estaria abandonado num sebo qualquer.
Como uma floresta eu seria jovem; como uma máquina, ridículo.
Como uma criatura humana, estou cansado, muito cansado.

Nasci em 1924. Quando penso em criaturas humanas,
vejo apenas as que nasceram no ano em que nasci,
cujas mães trabalharam lado a lado com a minha
onde quer que estivessem, em hospitais ou casas escuras.

Hoje, no meu aniversário, gostaria de recitar
uma prece solene para vocês
cujas vidas já se curvaram sob o peso
das esperanças e das frustrações,
cujos feitos se apequenam, e cujos deuses se multiplicam –
vocês são todos irmãos da minha fé, companheiros
de meu desespero.

talvez vocês encontrem a paz duradoura,
os vivos em suas vidas, os mortos
em estarem mortos.

E quem quer que lembre melhor de sua infância
é o vencedor,
se é que há vencedores.

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Yehuda Amichai.
Trad. Pedro Gonzaga.
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