sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Música para curar a alma: Maria João Pires

Partita No.1 in Si Bemol Maior, BWV 825, Johann Sebastian Bach
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A chave da música de Bach: o desejo de evadir-se do tempo. A humanidade não conheceu outro gênio que tenha apresentado com maior pathos o drama da queda do tempo e a nostalgia do paraíso perdido. As evoluções de sua música dão uma grandiosa sensação de ascensão em espiral até os céus. Com Bach nos sentimos nas portas do paraíso; nunca nele. A pressão do tempo e o sofrimento do homem caído no tempo amplificam a saudade de mundos puros, mas não nos transportam para eles. O pesar pelo paraíso é tão essencial nesta música que nos perguntamos se Bach teve alguma vez lembranças que não fossem as do paraíso. Um imenso e irresistível apelo ressoa profeticamente nela e qual é o sentido desse apelo senão tirar-nos deste mundo? [...] Quem, no êxtase desta música, não tenha sentido o transitório de sua condição natural e não tenha vivido a série de mundos possíveis que se interpõem entre o paraíso e nós não entenderá por que suas tonalidades estão constituídas por beijos de anjos.
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Emil Cioran, in: O Livro das Ilusões.
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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

[ Entre muitos ]

Mujer y Máscara, Kati Horna, 1963
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Sou quem sou.
Inconcebível acaso 
Como todos os acasos.

Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.

Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.

Alguém muito menos feliz, 
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.

Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.

Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.

E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou a aversão,
ou só pena?

Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechasse os caminhos?

A sorte até agora
me tem sido favorável.

Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.

Poderia ser eu mesma  mas sem espasmo,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
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Wislawa Szymborska.
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