domingo, 29 de março de 2015

"Pode ser que tudo esteja bem no plural de um mundo intenso. Mas o amor é outro poder, a carne vive da sua absorta permanência..."

Herberto Helder, 23/11/1930 - 23/03/2015
© foto de Alfredo Cunha, fevereiro de 2015
.
.
.
Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.


Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?

 Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. 
— Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.

 Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.

........................... — Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.
.

Herbeto Helder.
Elegia Múltipla, V.
.

quinta-feira, 12 de março de 2015

(silêncio) o silêncio diz


Then at one point i did not need to translate the notes; they went directly to my hands, Francesca Woodman, 1976

.
.
.
começar de dentro. do interior de onde as coisas começam. onde terminam sua elipse vertiginosa. o interior é o fim da partida. é o começo da volta. sair como quem volta. voltar como quem sai. a ficção viagem.
estar perto da própria coisa não está longe do extravio. veja as mãos do adolescente suando frio sem saber virar as páginas de um livro.
o interior é o lugar do extravio. onde não se fica. que lugar é um lugar onde não se fica? quando se chega ao limite. o limite é interior.
do interior se vai. como de pequenas cidades you know you have to leave. não se fica. no interior se chega. do interior se vai. aonde se chega no interior não se fica. areia cabra pedra e grito. mas não se fica.
o interior se trai se realiza. só se realiza quando se trai. o exterior das coisas é quando o interior se trai. por isso não há exterior puro poesia pura. aquilo que não se trai.
não há silêncio que não se traia.
no interior as coisas ressoam ocas. nada para ver. aqui só se ouve a coisa oca soar. um barco emborcado soa devolvido pelo rio debaixo da amoreira.
a ficção origem. a ficção precisa ser cultivada memória aparada mentira amparada. piedosamente. velha história morno ludíbrio da literatura.
a ficção interior é bem real. é a terra. um chão onde cair. ter onde cair morto é motivo de partir.
interior. se for pra partir quero que seja para não deixá-lo. aqui tudo começa como forma de não se deixar cair. quem nunca caiu de uma árvore precisa de segurança? quem já se jogou de uma árvore conhece a dor da queda?
(silêncio) o silêncio diz
você não reclama não pede não aceita não fica não arreda o pé. o interior se fecha se oferece. carrapicho áspera misericórdia.
Marcos Siscar.

sábado, 7 de março de 2015

"Em todo o belo há tristeza que se esconder..."

Narcissus, Gyula Benczúr, 1881
.
.
.
"Em todo o belo há tristeza que se esconder
Indefinida, pois, permanece sendo
Dupla e duplamente indecifrável
A si mesma, oculta e obscura a quem está vendo."
.
Walter Benjamin.
.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Música para curar a alma: Maria Callas (4)

Depuis de Jour, ária da Ópera Louise, de Gustave Charpentier, 1900
.
.
Depuis le jour où je me suis donnée,
toute fleurie semble ma destinée.

Je crois rêver sous un ciel de féerie,
l’âme encore grisée de ton premier baiser!
Quelle belle vie! Mon rêve n’était pas un rêve!
Ah! Je suis heureuse!
L’amour étend sur moi ses ailes!
Au jardin de mon coeur chante une joie nouvelle!
Tout vibre, tout se réjouit de mon triomphe!
Autour de moi tout est sourire, lumière et joie!
Et je tremble délicieusement
au souvenir charmant
du premier jour
d’amour!
Quelle belle vie!
Ah! je suis heureuse! trop heureuse…
Et je tremble délicieusement
au souvenir charmant
du premier jour
d’amour!

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails