domingo, 26 de agosto de 2012

"Todos os caminhos - nenhum caminho..."

 The Fallen Man (detail), Wilhelm Lehmbruck, 1915-16
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Eu ia triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta...
Coagulada em preto,
a noite isolou as cousas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais-de-trem...
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João Guimarães Rosa.
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domingo, 19 de agosto de 2012

"e eu já não reconhecia mais minhas próprias margens..."

Anna Akhmátova, Nathan Altman, 1914
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Eu, como um rio,
fui devastada por estes duros tempos.
Deram-me uma vida interina. E ela pôs-se a fluir
num curso diferente, passando pela minha outra vida,
e eu já não reconhecia mais minhas próprias margens.
Oh, quantos espetáculos perdi,
quantas vezes o pano ergueu-se
e caiu sem mim. Quantos de meus amigos
nunca encontrei uma só vez em toda a minha vida,
e quantas paisagens de cidades
poderiam ter-me arrancado lágrimas dos olhos;
mas só conheço uma cidade neste mundo
embora nela fosse capaz de achar meu caminho até dormindo;
e quantos poemas nunca cheguei a escrever,
e seus refrões misteriosos pairam à minha volta
e, talvez, de algum jeito, acabem por
me estrangular...
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Estão claros, para mim, o começo e o fim,
e a vida depois do fim, e mais algumas coisas
de que não tenho de me lembrar por enquanto.
Uma outra mulher ocupou
o lugar especialmente reservado para mim
e usa o meu nome,
deixando para mim só o apelido, com o qual
fiz, provavelmente, tudo que havia para se feito.
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Não me deitarei, ai de mim, em meu próprio túmulo.
Mas, às vezes, o vento brincalhão da primavera,
ou certas combinações de palavras em um livro,
ou o sorriso de alguém suscita em mim,
de repente, essa vida que nunca aconteceu.
Neste ano, houve tais e tais coisas,
naquele ano, aquelas outras: viajar, ver, pensar
e lembrar, e entrar em um novo amor
como dentro de um espelho, com a leve consciência
da traição e de que, ontem, ainda não estava ali
aquela ruga.
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Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
Aí sim, aprenderia finalmente o que é a inveja.
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Anna Akhmátova.
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domingo, 12 de agosto de 2012

"o olhar distrai-se do significado que o gesto constrói..."

 Labyrinth, Saul Steinberg, 1960
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Jamais saberei
o que A. pensava de mim.
Se B. acabou por me perdoar.
Por que razão fingia C. que tudo estava bem.
Qual a quota-parte de D. no silêncio de E.
O que esperava F. se acaso algo esperava.
Por que fingia G. sabendo de tudo.
O que tinha H. a esconder.
O que queria I. acrescentar.
Se o fato de eu estar por perto,
teve algum significado
para J. e K. e para o resto do alfabeto.
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Wisława Szymborska.
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domingo, 5 de agosto de 2012

"Enche a vida sem que seja visto. Faz da vida espuma e mergulha nela..."

 Body & Space, Antony Gormley, 2010
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Avança desarmado como o bosque e sem ser detido como a nuvem, ontem carregou um continente e mudou o mar de lugar.

Traça o avesso do dia. Dos pés produz um dia e da noite empresta um calçado e espera pelo que não virá. Ele é a física das coisas. Conhece-as, chama-as por nomes que não revela. Ele é o real e seu contrário, a vida e a não vida.

Ali onde a pedra vira lado e a sombra cidade, ele vive – e faz errar o desespero, apaga o chão da esperança, dança para o pó até que este boceje e dança para as árvores até que elas durmam.

Ei-lo a anunciar o cruzamento das pontas, a imprimir o signo da magia na fronte da nossa era.
Enche a vida sem que seja visto. Faz da vida espuma e mergulha nela. Transforma o amanhã em caça, corre atrás dela em desespero. Inscritas, suas palavras seguem rumo: à perdição, à perdição.

A confusão é a pátria, mas tem os olhos cheios.
Assusta e conforta.
exala terror transborda ironia
descasca os homens como cebola.
Ele é o vento que não volta atrás, a água que não retorna à fonte. Cria sua espécie a partir dele mesmo. Não tem ascendentes, suas raízes estão em seus passos.
Caminha no abismo e tem o porte do vento.
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Adonis.
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Antony Gormley, autor do desenho que ilustra o post, terá seu trabalho exposto no CCBB, a partir do dia 07 de agosto. "Corpos Presentes" é a primeira exposição individual do artista britânico no país.
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Antony Gormley: Corpos Presentes
Centro Cultural Banco do Brasil
Rua Primeiro de Março, 66, Centro
Ter à Dom, das 9h às 21h
De 07 de Agosto à 23 de Setembro de 2012
Entrada Gratuita.
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