quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Labyrinth...

 Labyrinth, Salvador Dali, 1941



Compêndio sobre a dor de existir.


"O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança."


"Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instintiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha."


"A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."


"Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento. Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atração da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão. Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo."


"Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má - e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má - ,sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são. E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valeram pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir."


"Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste. O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar… Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser!"


Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa.
Fragmentos de "O Livro do Desassossego".
.
.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

"A cor de primavera que há-de vir..."

Farm Garden with Sunflowers, Gustav Klimt, 1912


Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!


Casimiro de Abreu,
fragmento do poema "Meus Oito Anos".

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

"Sobrar-me-á sempre de que desejar, como um palco deserto..."

On The Nature of Daylight, Dresden SemperOper Ballett, by David Dawson



(...)
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas.
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me às mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...


Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

"Piés para qué los quiero..."

Butterflies, Odilon Redon, 1910
.
.
.
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva, etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
.
.
Manoel de Barros, in: Compêndio para Uso dos Pássaros.
.
.

domingo, 18 de setembro de 2011

(( Anǐma ))

Madonna in Glory (detail), Carlo Dolci, 1870
.
.
.
Entre as flores o seu coração estava em casa, como se fosse uma delas. A todas chamava pelo nome, por amor dava-lhes novos nomes mais belos e sabia exatamente a duração da vida de cada uma, na alegria. Tratava a Natureza como uma irmã, como um ser amado, de quem se gostaria de receber a primeira saudação da manhã. E de tudo isto se ocupava aquela serena criatura, absorta na sua felicidade, quando íamos passear ao prado ou à floresta. E tudo isto não era absolutamente nada cultivado, estabelecido. Era simplesmente desenvolvido, à medida que ela crescia. Trata-se, pois, de uma certeza eterna, por todo o lado comprovada: quanto mais inocente e bela é uma alma, tanto mais familiar ela se mantém em relação às outras vidas felizes, a essas que chamamos inanimadas.


Friedrich Hölderlin, in: Hipérion ou o Eremita da Grécia.


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O pensamento materializado: mestres da fotografia (9)

Shane, © foto de Bernard Plossu, 1982



Children Play With an Old Tyre, © foto de John Chillingworth, 1951



Gold Miner, © foto de Robin Hammond, 2011



Lion Profile, © foto de Boza Ivanovic, 2009



Street Child, © foto de Lewis Hine, 1910



8th Avenue Billboard, © foto de Michael Massaia, 2008



Sumayya, whose uncle, Imran Ali, injured in a shootout, looks at him as he is brought to a hospital for treatment in Karachi, © foto de Athar Hussain, 2011



La Dolce Vita, © foto de Thurston Hopkins, 1953



Hand in Hand, © foto de Norman Parkinson, década de 50



Mulberry Street, © foto de Sid Grossman, 1948



The Accident at the Gare Montparnasse, © foto de Lévy & Sons, 1897



Joan Crawford, © foto de George Hurrell, 1930



The Gorbals, © foto de Bert Hardy, 1948



On the Set of The Misfits, © foto de Ernst Haas, 1960



Pine Trees in Pushkin Park, © foto de Aleksandr Rodchenko, 1927



Bolshoi Ballet School, © foto de Cornell Capa, 1958



Japanese Paper Blossom, © foto de Cecil Beaton, 1957



Marilyn Monroe, © foto de Murray Garret, 1953



Times Square, © foto de Josef Hoflehner, 2009



The Beatles, © foto de John Loengard, 1964


.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Engana-tes. Sentir é sempre solitário.

 Dama y Ciervo, Sol Halabi, 2009
.

.
.
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


Eugénio de Andrade.
.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Cronopiando à moda de Julio.

Clown with Flowers, Marc Chagall, 1963



Um cronópio topa com uma flor solitária no meio dos campos.
.
Primeiro vai para arrancá-la, depois pensa que é uma crueldade inútil e põe-se-lhe à beira, de joelhos, brincando alegremente com a flor, a saber: acaricia-lhe as pétalas, sopra-lhe para dançar, zumbe como as abelhas, cheira-lhe o perfume e deita-se por fim por baixo da flor, adormecendo envolto numa grande paz.
.
A flor pensa: "É como uma flor".


Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios y de Famas.

.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

"O ser vivo que é um verso..."

St. John The Baptist, Leonardo da Vinci, 1516



A tinta e a lápis
Escrevem-se todos
Os versos do mundo.

Que monstros existem
Nadando no poço
Negro e fecundo?

Que outros deslizam
Largando o carvão
De seus ossos?

Como o ser vivo
Que é um verso,
Um organismo

Com sangue e sopro,
Pode brotar
De germes mortos?

O papel nem sempre
É branco como
A primeira manhã.

É muitas vezes
O pardo e pobre
Papel de embrulho;

É de outras vezes
De carta aérea,
Leve de nuvem.

Mas é no papel,
No branco asséptico,
Que o verso rebenta.

Como um ser vivo
Pode brotar
De um chão mineral?
.
.
João Cabral de Melo Neto.
.
.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

"O amarelo vivo, o rosa violáceo, o azul pureza, o verde cantante...”

Tarsila do Amaral, 1886-1973




Quem utilizar o google hoje, será involuntariamente apresentado a uma biografia das mais importantes dentro da história das artes plásticas do país.

Tarsila do Amaral, que estaria completando 125 anos, dividi com Anita Malfatti o status de maior pintora brasileira. No entanto, se a personalidade artística de Anita parece um tanto titubeante, o mesmo não ocorre com Tarsila. A linearidade do seu estilo cubista, às vezes expressionista, retrata com precisão um sentido de brasilidade incomum. Esse sentimento manisfesta-se na utilização das cores, no registro da religiosidade, paisagens e cidadezinhas bucólicas, na estilização das frutas e plantas tropicais ou mesmo na representação cotidiana e verossímil de sua gente: negros, caboclos, índios, mulheres agigantadas, trabalhadores... então todos lá, congeminados no seu traço inconfundível e personalíssimo.



Academia No.4, 1922



Beatriz Menina, 1939



Chapéu Azul, 1922



Vendedor de Frutas, 1925



Estudo (Grande Nu), 1922



Abaporu, 1928



Auto-Retrato (Manteau Rouge), 1923



Maternidade, 1938



Vaso com Dálias, s.d.



Retrato de Oswald de Andrade, 1922



Primavera, 1946



Segunda Classe, 1933



Praia, 1947



Operários, 1933



Costureiras, 1936-1950



O Pescador, 1925



Paisagem com Touro I, 1925



Religião Brasileira l, 1927



Morro da Favela, 1924



A Família, 1925



A Feira II, 1925



Cartão Postal, 1929



O Lago, 1928



Antropofagia, 1929




Contrastes de verticalidade gótica e de volúpias rasteiras,
rudezas do alto sertão e do agreste,
maciços de catingueiras
salpicadas
nos tempos de chuva de vermelhos
que são ao sol como pintas de sangue fresco,
e de amarelos vivos,
de roxos litúrgicos.
No verão chupadas pelo sol de todo esse sangue e de toda
[essa cor,
quase reduzidas
aos ossos dos cardos.
Paisagem animada de tantos verdes
tantos vermelhos, tantos roxos, tantos amarelos
em tufos, cachos, corolas e folhas
como os cachos rubros em que esplende a ibirapitanga e
[arde o mandacaru,
como as formas verdadeiramente heráldicas em que se
[ouriçam os quipás,
como as folhas em que se abrem os mamoeiros
e as manchas violáceas das coroas-de-frade.

Gilberto Freyre.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails