terça-feira, 30 de julho de 2013

[ Cartografia Poética ]

Penibético, Fernando Vicente, s.d
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Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo de São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.


Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.


Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
Vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo no cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.
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Murilo Mendes

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sábado, 27 de julho de 2013

"...antes essa memória aberta com um olho ou a clareira de uma órbita ossosa que vos deixa ver sem vos mostrar absolutamente nada."

The Blind Man's Meal, Picasso, 1903
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O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
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Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
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Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
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Ele lê - pois já não pode parar -
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
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Ele gostaria de omitir - embora seja impossível -
todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
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Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
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Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.
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Wislawa Szymborska.
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terça-feira, 23 de julho de 2013

sábado, 20 de julho de 2013

Agenda: Jacques Henri Lartigue, A Herança do Sagrado, Sabine Weiss, Haruo Ohara...

Egypt, Sabine Weiss, 1983
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"Sabine Weiss, amor pela vida" é a primeira retrospectiva da fotografa suíça no país. As 132 fotografias que integram a mostra, estão divididas em seis seções: "Infância", "A fé", "Noite e Neblina", "Ambientes", "Outras terras" e "Artistas".  
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Sabine Weiss, Amor pela Vida
Centro Cultural Correios
Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro
Ter à Dom, das 12h às 19h
Até 04 de agosto de 2013
Entrada Gratuita
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Jeannine Lhemann, Royan, Jacques Henri Lartigue, 1926
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Fruto da parceria entre o Instituto Moreira Salles e a Donation Lartigue, a mostra "Jacques Henri Lartigue - A vida em movimento", reúne acervo significativo que vai desde as suas primeiras fotografias à exibição de um filme rodado em família durante o verão de 1914.
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Jacques Henri Lartigue - A vida em movimento
Instituto Moreira Salles 
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea
Ter à Dom, das 11h às 20h
Até 15 de setembro de 2013
Entrada Gratuita
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Paisagem de Lins, Manabu Mabe, 1949
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O espaço da Caixa Cultural expõe obras do pintor Manabu Mabe. As 30 pinturas e 5 desenhos, realizados entre 1945 e 1959, marcam sua transição do estilo figurativo para o abstracionismo.
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Chove no Cafezal - Mabe, da Figura à Abstração
Caixa Cultural Rio
Av.  Almirante Barroso, 25, Centro
Ter à Dom, das 10h às 21h
Até 08 de setembro de 2013
Entrada Gratuita
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Colheita ao Amanhecer, Haruo Ohara, 1944
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A trajetória de Haruo Ohara é encantadora. De imigrante e lavrador, no norte do Paraná, a fotógrafo de olhar humanista. Parte desse belo percurso pode ser visto através de 110 imagens em preto e branco, expostas até o dia 08 de setembro, no IMS.
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Haruo Ohara - Fotografias
Instituto Moreira Salles 
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea
Ter à Dom, das 11h às 20h
Até 08 de setembro de 2013
Entrada Gratuita
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The Madona and Child, Artemisia Gentileschi, 1612
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A exposição "A Herança do Sagrado: obras-primas do Vaticano e museus italianos", faz parte das atividades culturais da JMJ, mas vai além do caráter litúrgico. É uma raríssima oportunidade de contemplar obras importantes dos períodos renascentista e barroco.
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As obras fazem parte dos acervos do Museu do Vaticano, Galleria Borguese, Museo del Palazzo Venezia, Musei Capitolini, Museo di Capodimonte, Galleria Nazionale delle Marche, Galleria Palatina e da Fabbrica di San Pietro. 
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Entre as 105 obras que compõem a exposição, dividida em quatro módulos, encontram-se trabalhos de  Leonardo da Vince, Guido Reni, Ticiano Vecellio, Guercino, Sebastiano Conca e Artemizia Gentileschi.
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A Herança do Sagrado: obras-primas do Vaticano e museus italianos
Museu Nacional de Belas Artes
Av. Rio Branco, 199, Cinelândia
Ter à Dom, das 9h às 21h
Até 13 de outubro de 2013
Entrada Gratuita
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quinta-feira, 18 de julho de 2013

Um bom lugar para ler um livro?

The Reader, Pierre-Auguste Renoir, 1876
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Na fila de espera, qualquer uma, e são tantas. Num jardim. Numa praça. Na praia. À sombra de uma árvore... Nova sessão do blog, para aqueles que vivem com um livro a tiracolo e acreditam que qualquer paragem é um bom lugar para lê-los.
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quinta-feira, 11 de julho de 2013

"como se a paisagem passasse e nós ficássemos..."

Des Glaneuses, Jean-François Millet, 1857
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"Tem de se poder partir
contudo ser como uma árvore:
como se a raiz permanecesse na terra,
como se a paisagem passasse e nós ficássemos (...)"
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Hilde Domin.
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segunda-feira, 8 de julho de 2013

"Nothing is mysterious, no human relation. Except love."

Susan Sontag, Henri Cartier-Bresson, Paris, 1972
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31/12/1957
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Sobre fazer um diário.
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É superficial entender o diário apenas como receptáculo dos pensamentos privados, secretos, de alguém — como um confidente que é surdo, mudo e analfabeto. No diário eu não apenas exprimo a mim mesma de modo mais aberto do que poderia fazer com qualquer pessoa; eu me crio.
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O diário é um veículo para o meu sentido de individualidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente) não apenas registra a minha vida real, diária, mas sim — em muitos casos  oferece uma alternativa para ela.
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Há muitas vezes uma contradição entre o sentido de nossas ações em relação a uma pessoa e o que dissemos que sentimos em relação a essa pessoa num diário. Mas isso não significa que aquilo que fazemos é superficial e só aquilo que confessamos para nós mesmos é profundo. Confissões, refiro-me a confissões sinceras, é claro, podem ser mais superficiais do que as ações. Tenho em mente agora aquilo que li hoje no diário de Harriet a meu respeito — aquela avaliação seca, injusta, impiedosa a meu respeito que conclui com ela dizendo que na verdade não gosta de mim mas que a minha paixão por ela é aceitável e oportuna. Deus sabe como isso magoa e me sinto indignada e humilhada. Raramente sabemos o que as pessoas pensam a nosso respeito (ou melhor, acham que pensam a nosso respeito)... Eu me sinto culpada por ter lido algo que não se destinava aos meus olhos? Não. Umas das principais funções (sociais) de um diário é exatamente ser lido escondido por outras pessoas, pessoas (como pais + amantes) sobre as quais o autor se mostrou cruelmente franco apenas no diário. Será que Harriet vai ler isto?
Escrever. É corruptor escrever com o intuito de moralizar, elevar os padrões morais das pessoas.
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Nada me impede de ser uma escritora, a não ser a preguiça. Uma boa escritora.
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Por que escrever é importante? Sobretudo por vaidade, eu suponho. Porque eu quero ser essa persona, uma escritora, e não porque exista alguma coisa que eu devo dizer. E no entanto por que não também isso? Com um pouco de construção do ego — como o fait accompli que este diário proporciona — eu vou superar as dificuldades para adquirir a confiam de que eu (eu) tenho algo a dizer, e que deve ser dito.
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Meu “eu” é insignificante, cauteloso, sadio demais. Bons escritores são egoístas ferozes, ao ponto mesmo da estupidez. Críticos sensatos corrigem os escritores — mas sua sensatez é parasítica da faculdade criativa dos gênios.
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Susan Sontag, in: Diários (1947-1963).
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terça-feira, 2 de julho de 2013

Mulheres à beira-mar...

Naiad 2, Janaína Tschäpe, 2004
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Confundido os seus cabelos com os cabelos
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e 
tão denso em plena liberdade.
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Lançam os braços pela praia fora e a brancura 
dos seus pulsos penetra nas espumas.
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Passam aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminável rastro no céu
branco.
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Com a boca colada ao horizonte aspiram longa-
mente a virgindade de um mundo que nasceu.
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O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.
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E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de
ser tão verde.
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Sophia de Mello Breyner.

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